É possível o reconhecimento do parentesco socioafetivo, post mortem, entre irmãos de “criação”? A resposta a essa pergunta encontra respaldo em recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
No caso, dois irmãos consanguíneos pleitearam o reconhecimento do vínculo socioafetivo entre eles e uma “irmã de criação”, após o falecimento desta.
No processo – que está em segredo de justiça -, o juízo de primeiro grau extinguiu a ação sem resolução do mérito, com o fundamento de que o pedido não teria amparo no ordenamento jurídico.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) manteve a decisão, por entender que a irmã falecida não buscou o reconhecimento de filiação socioafetiva em relação aos genitores dos irmãos consanguíneos, o que impossibilitaria o reconhecimento de parentesco colateral socioafetivo unicamente para atribuir direitos sucessórios aos irmãos.
Vale transcrever a ementa da decisão do TJSP:
“PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE PARENTESCO COLATERAL SOCIOAFETIVO. IRMÃOS DE CRIAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. A parentalidade socioafetiva pressupõe o estado de posse de filho (vínculo entre o pai ou a mãe e o filho), só podendo ser estendida aos demais parentes e membros da família quando houver prévio reconhecimento da filiação. Irmã de criação que não buscou em vida ser reconhecida filha dos pais dos autores. Direito personalíssimo dos pais falecidos de definir relação de parentesco de primeiro grau. Impossibilidade de supressão pelo parente de segundo grau, principalmente diante da ausência de manifestação, em vida, dos genitores e da irmã de criação. Parentalidade socioafetiva que, ademais, tem por fundamento a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, privilegiando os laços de amor em detrimento da origem biológica, razão pela qual seu reconhecimento não pode servir unicamente para atribuir direitos sucessórios aos autores. Petição inicial indeferida. Sentença mantida. Recurso desprovido.”
Inconformados, os irmãos recorreram ao STJ, sustentando que a falecida fora criada juntamente com eles na condição de irmã e, por essa razão, pretendiam, como irmãos, o reconhecimento do parentesco socioafetivo. O recurso especial dos irmãos (REso 1.674.372/SP) foi admitido no STJ em abril de 2017, tendo sido julgado em outubro de 2022.
No julgamento, a 4ª Turma do STJ entendeu que a declaração da existência de relação de parentesco de segundo grau na linha colateral é admissível no ordenamento jurídico, merecendo a apreciação do Poder Judiciário.
Para o relator, ministro Marco Buzzi, a atual concepção de família implica um conceito amplo. Nesse sentido, o Art. 1.593 do Código Civil, dá margem para uma interpretação extensa da expressão “outra origem”, senão vejamos:
“Art. 1.593: O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.”
Conforme o entendimento da Corte, a socioafetividade tem assento tanto na relação paterno-filial quanto no âmbito das relações mantidas entre irmãos, associada a outros critérios de determinação de parentesco (presuntivo ou biológico).
Ainda, segundo a Turma, para a caracterização do parentesco colateral por afetividade não se exige prévia declaração judicial de paternidade ou maternidade socioafetiva. Nesse viés, é juridicamente possível pleitear o reconhecimento da fraternidade socioafetiva, sem que haja o reconhecimento da maternidade/paternidade socioafetiva por parte do irmão(a) de criação.
A decisão STJ no caso em análise, no entanto, limitou-se a admitir que, em tese, é possível o reconhecimento do parentesco colateral (entre irmãos) socioafetivo, ainda que na ausência de pleito similar perante os pais socioafetivos.
Como o processo originalmente proposto em primeira instância havia sido extinto em sua fase inicial, sem qualquer análise do mérito da ação, o STJ determinou que o processo retornasse à 1ª instância para que os irmãos – autores da ação – pudessem produzir todas as provas que entendessem necessárias para que, então, a Justiça pudesse se manifestar sobre o pedido de reconhecimento.
Em outras palavras, não houve o reconhecimento de parentesco colateral sociofetivo no caso concreto, mas apenas a admissão de que esse reconhecimento é juridicamente possível sob a lei brasileira. Assim, os irmãos deverão continuar com o processo em 1ª instância e produzir todas as provas possíveis para que a Justiça, depois de analisá-las, decida pela procedência ou não do pedido de reconhecimento de fraternidade socioafetiva com os direitos a ela inerentes, como é o caso dos direitos sucessórios.
Sem dúvida, é uma questão nova sob o ponto de vista jurisprudencial, que deverá servir de orientação para outras causas desse estilo.
Ana Bárbara Zillo é advogada do departamento de wealth planning do BLS Advogados, em São Paulo.
NOTA DO EDITOR: Assista o resultado do julgamento por esse link: https://www.youtube.com/watch?v=hRzRrT85FlI&t=2944s
FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA, UNIÃO ESTÁVEL, NAMORO ETC. SÃO ASSUNTOS TRATADOS NO NOSSO BEST-SELLER PLANEJAMENTO PATRIMONIAL E SUCESSÓRIO: