A recente proposta da reforma do Código Civil, apresentada ao Senado em abril deste ano, propõe significativas alterações na legislação sucessória brasileira, como a exclusão do cônjuge e do companheiro da lista de herdeiros necessários.
Atualmente, o Código Civil define que os herdeiros necessários são os descendentes (filhos, netos, bisnetos), ascendentes (pais, avós, bisavós etc.) e o cônjuge, conforme determina o artigo 1.845 do CC.
Herdeiros necessários são aqueles que devem, necessariamente, participar da sucessão da pessoa falecida. Isso lhes assegura, hoje, uma parcela da herança legítima, correspondente a metade dos bens da pessoa falecida (50%).
Com a retirada do cônjuge/companheiro do rol de herdeiros necessários, eles deixam de receber essa “parte” da herança. No entanto, não perdem o direito à meação, a depender do regime de bens adotado, que garante metade do patrimônio adquirido de forma onerosa durante a relação.
Explico. Imagine um casal, casado em comunhão parcial de bens, que construiu ao longo da vida e de forma conjunta, um patrimônio de R$ 1 milhão. Imagine que, além disso, o marido (que faleceu) havia recebido uma herança de R$ 400 mil em vida.
Pela regra atual, metade do patrimônio construído pelo casal (R$ 500 mil) já pertence à viúva por força da meação. Os outros R$ 500 mil são considerados herança do falecido e serão distribuídos entre os descendentes (filhos) ou, na falta destes, entre os ascendentes juntamente com o cônjuge. Já os R$ 400 mil recebidos à título de herança pelo falecido serão divididos igualmente entre o cônjuge e os filhos, como herança. Se forem três os filhos, o patrimônio será dividido da seguinte forma: cônjuge sobrevivente: R$ 500 mil a título de meação, mais R$ 100 mil a título de herança (1/4 da herança proveniente dos R$ 400 mil da herança recebida pelo marido). Cada um dos filhos, por sua vez, receberá R$ 166 mil (1/3 de R$ 500 mil) e mais R$ 100 mil (1/4 da herança proveniente dos R$ 400 mil da herança recebida pelo pai). Assim, temos o cônjuge recebendo R$ 600 mil e cada filho recebendo R$ 266,6 mil.
Conforme a redação atual e no regime de comunhão parcial de bens, o cônjuge/companheiro é meeiro, ou seja, é proprietário de metade de todo o patrimônio adquirido durante a união. Em relação aos bens particulares do falecido, o cônjuge herda junto com os descendentes.
Com a nova regra proposta, o cônjuge deixaria de ser herdeiro necessário e só teria o que é seu por direito, segundo o regime de bens do casamento. Isso significa que ele teria direito apenas aos R$ 500 mil garantidos pela meação e não receberia nada dos R$ 400 mil da herança.
Colocando isso em números, no exemplo acima, teríamos o cônjuge recebendo R$ 500 mil a título de meação e nada como herança, e cada filho recebendo R$ 300 mil (1/3 de R$ 500 mil da legítima deixada pelo pai mais 1/3 de R$ 400 mil da herança herdada pelo pai, da qual o cônjuge deixa de participar).
Vale ressaltar que, mesmo com a exclusão do cônjuge/companheiro do rol de herdeiros necessários, eles ainda permanecerão na ordem de sucessão hereditária (em outra posição), prevista no artigo 1.829 do Código Civil.
Destacamos um comparativo da ordem de vocação hereditária, disposta no Código Civil, para melhor compreensão:
Código Civil (Lei 10.406, de 2002) atual: | Anteprojeto do Código Civil: |
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I- aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II- aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III- ao cônjuge sobrevivente; IV- aos colaterais. | Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I- aos descendentes; II- aos ascendentes; III- ao cônjuge ou convivente sobrevivente; IV – aos colaterais até o quarto grau. |
A proposta de reforma do Código Civil também propõe uma modificação no Artigo 1.829, rebaixando o cônjuge/companheiro para a terceira posição na ordem de vocação hereditária, ficando atrás dos descendentes e dos ascendentes.
Isso implica que, na ausência de um testamento, os bens serão destinados primeiramente aos descendentes e ascendentes. Somente na falta destes, a transmissão ocorrerá exclusivamente para o cônjuge.
No entanto, mediante disposição de última vontade, se o testador não possuir herdeiros necessários (ascendentes ou descendentes), poderá destinar seu patrimônio para quem desejar, inclusive excluindo o cônjuge da herança, se assim preferir. Ou seja, em um casamento sob o regime da separação total de bens (em que não há meação), por meio de um testamento, o cônjuge poderá deixar todo o seu patrimônio para quem quiser, excluindo o cônjuge sobrevivente.
Os defensores da proposta argumentam que essa mudança amplia a autonomia do indivíduo, permitindo-lhe maior liberdade na disposição de seu patrimônio. Além disso, incentivaria o planejamento sucessório, pois os casais poderiam organizar previamente a distribuição de bens por meio de testamentos e pactos antenupciais, o que poderia reduzir potenciais litígios familiares.
Por outro lado, críticos da proposta, como a vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Dra. Maria Berenice Dias, apontam para a potencial vulnerabilidade econômica que a exclusão pode causar, especialmente para mulheres.
Para ela, a exclusão dos cônjuges como herdeiros necessários poderia deixar muitos cônjuges e conviventes financeiramente desprotegidos após a morte do parceiro, uma vez que, em muitos casos, o patrimônio do casal está registrado em nome do homem devido a práticas sociais conservadoras.
É importante destacar que ainda não há um prazo determinado para que a nova lei seja votada ou aprovada. Além disso, essas mudanças, caso sejam implementadas, terão um impacto considerável no planejamento patrimonial e sucessório.
Em resumo, a proposta de reforma do Código Civil que remove cônjuges e companheiros da lista de herdeiros necessários tem como objetivo modernizar a legislação sucessória e aumentar a autonomia do testador na distribuição de seus bens.
No entanto, essa proposta tem gerado críticas substanciais de doutrinadores e juristas, que apontam possíveis consequências negativas, especialmente para cônjuges economicamente dependentes.
Ana Bárbara Zillo é advogada pós-graduanda em planejamento patrimonial e sucessório e associada do departamento de wealth planning do BLS Advogados, em São Paulo/SP.
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