Por Emily Cavali da Costa Meira
É inegável a responsabilização do devedor face às suas dívidas e obrigações. Essa responsabilização, no entanto, não deve comprometer a própria subsistência do devedor. Sendo o salário do devedor a sua fonte de renda, a pergunta que fica é qual são os limites da impenhorabilidade do salário do devedor?
Conforme previsto na Constituição, o acesso à justiça é direito fundamental que garante a todos a possibilidade de pleitear a tutela jurisdicional do Estado. Na medida em que o judiciário busca essa tutela tempestiva, justa e adequada, deparamo-nos com o princípio constitucional, o direito de ação, que é a garantia de pronunciamento estatal para a solução dos litígios, buscando o reconhecimento do direito entre as partes.
No entanto, uma vez reconhecido tal direito, deve-se garantir a efetividade dessa tutela jurisdicional legitimada, pois o direito material, por si só, não é suficiente para assegurar o cumprimento das obrigações reconhecidas por título judicial.
Dessa maneira, se torna parte da função do Poder Judiciário, a atividade satisfativa, que é exercida através do cumprimento de sentença ou pelo processo de execução.
Assim, os direitos reconhecidos, em juízo ou em título extrajudicial, devem ser efetivados, aí nasce o direito a uma prestação, que dá o poder a alguém de exigir o cumprimento de uma prestação a outrem no caso de não cumprimento da obrigação, ou inadimplemento.
A tutela executiva confere ao juízo meios coercitivos para a execução forçada da obrigação, uma vez que a conduta prática do devedor pode consistir na prestação de fazer e não fazer ou na entrega da coisa, sendo essas obrigações específicas e, o pagamento do direito à quantia, sendo essa uma obrigação genérica.
Para cada espécie de prestação existe uma técnica executiva, elencada pela lei, que adota diferentes soluções para a satisfação da obrigação que iniciou a atividade executiva.
Referente ao pagamento de quantia certa, a técnica executiva que força o cumprimento da obrigação de pagamento da quantia certa, é o procedimento da penhora, conforme o disposto no artigo 798 do CPC “O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei”. Esse artigo adota o princípio da responsabilidade patrimonial, na medida em que os bens/patrimônio do devedor ficam sujeitos a penhora.
Contudo, é possível observar que o legislador se preocupou em estabelecer limites à aplicação do princípio da responsabilidade patrimonial, a fim de evitar abusos e buscar um equilíbrio entre as partes. Assim, passou a existir algumas restrições legais, bens inalienáveis e impenhoráveis que são tratados pelos artigos 833 e 834 do CPC.
Importante, esclarecer que o art. 833 do CPC traz um rol, não taxativo, de proteção aos bens do devedor, como forma de garantir o direito da dignidade da pessoa humana, resguardando o devedor de uma expropriação excessiva que comprometa a sua subsistência.
Entretanto, o inciso IV do art.833 do CPC, apresenta, em especial, uma relativização dessa limitação. Tendo em vista, que o legislador no Novo Código de Processo Civil suprimiu a expressão “absolutamente”, a partir desse momento tanto a doutrina quanto a jurisprudência passaram a tratar como relativa.
Uma vez que o legislador impõe a intangibilidade da penhora salarial, temos uma extrema proteção do devedor e seu patrimônio, deixando de lado os princípios do processo de execução e o direito de reparação do credor, que busca alcançar bens passiveis de liquidar a dívida.
Sendo assim, a impenhorabilidade absoluta dos salários ou o limite de 50 (cinquenta) salários-mínimos, nos casos práticos, demonstra-se uma proteção excessiva por parte do ordenamento jurídico, ferindo o preceito da isonomia material.
Diante desses pontos, os tribunais passaram a admitir a penhora de percentual de salário, analisando que devida constrição não irá afetar a dignidade humana e a subsistência do devedor, mas tal medida é de caráter excepcional uma vez que ocorre diversas frustrações da satisfação do direito do exequente.
Conforme o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, podemos verificar que “…A impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. tem por fundamento a proteção à dignidade do devedor, com a manutenção do mínimo existencial e de um padrão de vida digno em favor de si e de seus dependentes. Por outro lado, o credor tem direito ao recebimento de tutela jurisdicional capaz de dar efetividade, na medida do possível e do proporcional, a seus direitos materiais…. Embora o executado tenha o direito de não sofrer atos executivos que importem violação à sua dignidade e à de sua família, não lhe é dado abusar dessa diretriz com o fim de impedir injustificadamente a efetivação do direito material do exequente…. A regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (art. 649, IV, do CPC/73; art. 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família….”[1]
No mesmo sentido, o STJ julgou que “Em situações excepcionais, admite-se a relativização da regra de impenhorabilidade das verbas salariais prevista no art. 649, IV, do CPC/73, a fim de alcançar parte da remuneração do devedor para a satisfação do crédito não alimentar, preservando-se o suficiente para garantir a sua subsistência digna e a de sua família“[2].
Portanto, conclui-se que diante das circunstâncias fáticas é passível a excepcionalidade da regra para mitigar o caráter absoluto da impenhorabilidade, inclusive, na satisfação de créditos não alimentares, uma vez frustradas as tentativas de outras formas de garantir o adimplemento da dívida. Sendo assim, apenas se revela necessária, adequada, proporcional e justificada a impenhorabilidade daquela parte do patrimônio do devedor que seja efetivamente necessária à manutenção de sua dignidade e da de seus dependentes.
Emily Cavali da Costa Meira é trainee do escritório Poletto & Possamai, em Curitiba/PR.
[1] EREsp n. 1.582.475/MG, relator Ministro Benedito Gonçalves, Corte Especial, julgado em 3/10/2018, REPDJe de 19/03/2019, DJe de 16/10/2018.)
[2] (EREsp 1.518.169/DF, Rel. p/ acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, j. em 03/10/2018, DJe de 27/02/2019).