Por Ana Luiza Naback
Você é casado. Empresário. Seguiu o regime de comunhão de bens porque, na época, não era necessário pensar a respeito. O contrato social da sociedade foi feito utilizando o modelo do Google ou, na fase embrionária, não fazia sentido dispender uma boa quantia para contratar um profissional especializado, que levasse em consideração uma série de fatores para elaborar o documento de constituição da sua sociedade. Tudo no começo: casamento, amor, empresa, vida.
A empresa cresce, alavanca, passa a contar com mais investimentos. O resultado é satisfatório, a divisão de lucros ou dividendos se encontra além do esperado. O casamento (ou a sua união estável) caminha bem, a vida está nos eixos.
Até que um dia não está mais. O relacionamento desanda, a família se desestrutura, o fim chega com o divórcio ou com a dissolução da união estável. Brigas, ressentimentos, “o que é meu” de um lado, “o que é seu” do outro, “o que era nosso” deixa de existir.
Você até se lembra do celebrante falando “até que a morte os separe”, mas pensa que atualmente não é bem assim. Ninguém é obrigado a permanecer enlaçado se não há mais afinidade e viabilidade da vida comum. Vocês tentaram, mas não deu.
O fim de um relacionamento é sempre um tormento. Sofrido. Principalmente quando o relacionamento já tem eficácia jurídica (casamento e união estável). Você acredita que todo o turbilhão do desenlace termina quando finalmente vocês vão assinar a partilha dos bens. Acabou. Agora é cada um para o seu lado. O divórcio os separou e a vida seguirá no singular.
Bom, pelo menos era o que você pensava.
Se você é empresário e em se tratando de sociedades pautadas pelo ânimo de se associar (affectio societatis), como as limitadas, principalmente aquelas constituídas ou das quais você se torna sócio quando possui um relacionamento regido por um regime que implica comunhão de bens, o término não determinará diretamente a partilha das quotas societárias, de modo a tornar o seu ex-cônjuge ou ex-companheiro sócio. Todavia, a separação do casal nessas condições irá demandar a partilha dos lucros ou dividendos enquanto você permanecer na condição de sócio.
A justificativa vem do art. 1.027, do Código Civil, o qual afirma que o cônjuge do sócio que dele se separou não pode exigir desde logo a parte que lhe couber na quota social, mas sim concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade.
No entanto, não raras vezes a parte final do dispositivo deixa de ser considerada nas decisões de divórcio e partilha ou nos procedimentos extrajudiciais de separação. E isso é um equívoco. A partilha dos lucros e dividendos das quotas sociais não se limita ao fim do relacionamento, sendo esse o entendimento ratificado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em recente decisão, endossado pelos demais tribunais estaduais, bem como pelo STJ. Veja a decisão do TJSP:
Fase de liquidação da sentença proferida em ação de cobrança de dividendos oriundos de quotas de limitada, movida por ex-mulher contra o ex-marido. Quotas de titularidade do réu, mas objeto de partilha em ação de divórcio. Decisão que limitou os exercícios nos quais os dividendos deveriam ser apurados àqueles expressamente mencionados na sentença. (…)
Ex-mulher que, em função da partilha, passou a ter direito à 50% dos dividendos pagos pela sociedade, enquanto o ex-marido mantiver a condição de sócio, ainda que posteriores à sentença.
Obrigação de trato sucessivo. Inteligência do art. 323 do CPC. (…) Dividendos são prestações sucessivamente devidas pela sociedade aos sócios, embora nem sempre periódicas. (…)”.[1]
O pagamento dos lucros ou dividendos da sociedade é uma obrigação de trato sucessivo, isto é, que se repete reiteradamente até que cesse o motivo que a ela deu origem. No caso enfrentado pelo Tribunal Paulista, o casal era casado em comunhão universal de bens, o que faz deixar de importar o que cada um tinha ao formalizar o vínculo matrimonial, já que por esse regime os bens, sejam eles pretéritos ou adquiridos na constância do casamento, passam a se comunicar meio a meio entre o par.
Sobrevindo o divórcio, a ex-mulher não tem o direito de se tornar sócia em razão da natureza da sociedade empresária envolvida (sociedade de pessoas), porém tem direito à metade dos frutos que a participação societária do ex-marido lhe proporcionar, enquanto ele permanecer como sócio.
Embora muitos sejam levados a afirmar que isso não está certo e que o pagamento deveria ocorrer até a data da decretação do fim do relacionamento e partilha, não é o que a lei e a jurisprudência afirmam. Como dito, para que cesse uma obrigação sucessiva, é necessário que deixe de existir o motivo que ensejou o seu surgimento. Transportando essa ideia para o caso concreto analisado, o motivo que deu origem à percepção de lucros pelo marido foi o fato de ele se tornar sócio de uma sociedade. Enquanto sócio for, receberá esses frutos, devendo reparti-los com a ex-mulher como consequência do regime de bens escolhido ao se casar.
Logo, a forma de fazer cessar essa obrigação de partilhar com a ex-mulher os lucros da sociedade não é tão somente se divorciar, mas sim deixar de ser sócio, como preconiza o art. 1.027 do Código Civil. Ao deixar de ser sócio, liquidando-se a participação societária ou até mesmo a sociedade, finda o motivo que originou a obrigação de trato sucessivo e, por conseguinte, a própria obrigação em si.
Para evitar essa situação complicada, diversos fatores devem ser levados em consideração. Da escolha do regime de bens a um contrato social bem elaborado e estruturado, capaz de cercar com assertividade todos os revezes da vida a que se está sujeito, é preciso pensar com cuidado e, principalmente, quando ainda há diálogo e compreensão entre as partes envolvidas. O planejamento não é só olhar para o final, mas também se atentar para as nuances do meio da jornada.
Se esses cuidados não forem tomados a tempo e modo, mesmo após o divórcio ou a dissolução da união estável, o empresário que se mantém na posição de sócio seguirá partilhando com o ex-consorte os frutos dessa participação societária, independentemente de quando o fim entre eles se consolidou. O velho brocardo “até que a morte os separe” na verdade ganha um novo contorno, pois mesmo tendo se divorciado, ambos permanecerão ligados até o que o fim da sociedade os separe.
[1] TJSP. AI nº 2137967-19.2024.8.26.0000. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Rel. Des. Cesar Ciampolini. Dj. 03/07/2024.
Ana Luiza Naback é advogada pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, , e associada do departamento de wealth planning do BLS Advogados em Belo Horizonte/MG.