Inovações trazidas pelo Código Civil de 2002, que completa vinte anos, trouxeram impactos relevantes nas cláusulas restritivas aplicáveis aos testamentos, e o seu uso inapropriado pode invalidar todo o documento, pondo em risco os desejos do testador.
Figuras conhecidas no planejamento sucessório são as cláusulas restritivas, que podem ser incluídas em instrumentos de doação e testamentos. Entre elas, temos inalienabilidade (impossibilidade de alienação a terceiros do bem gravado com esta cláusula), a incomunicabilidade (que impede que o bem assim clausulado comunique com o patrimônio comum, nos regimes comunheiros) e a impenhorabilidade (que evita a possibilidade de o bem recebido com tal cláusula seja penhorado).
Também é de conhecimento relativamente comum que essas cláusulas, quando inseridas em testamento gravando a fração de patrimônio legítima do titular (porção de 50% do patrimônio do titular que pertence a seus herdeiros necessários), devem ser acompanhadas de justa causa. Por outras palavras, quando o titular do patrimônio faz seu testamento e decide gravar a fração legítima com cláusulas restritivas, faz-se necessário que o testador justifique a razão pela qual o patrimônio a ser transmitido o será com essas restrições.
O que talvez não seja muito difundido é que essa exigência de justa causa é uma imposição que surgiu com o Código Civil de 2002.
Em razão do novo regramento, o mesmo Código Civil previu uma regra de transição, no bojo de seu artigo 2.042, a saber:
Art. 2.042. Aplica-se o disposto no caput do art. 1.848[1], quando aberta a sucessão no prazo de um ano após a entrada em vigor deste Código, ainda que o testamento tenha sido feito na vigência do anterior, Lei n o 3.071, de 1 o de janeiro de 1916; se, no prazo, o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa de cláusula aposta à legítima, não subsistirá a restrição.
Ou seja, aqueles que fizeram testamento sob a égide do Código Civil de 1916 tinham prazo de um ano após a entrada em vigor do novo Código para se adequar à nova exigência de justa causa para imposição de cláusula restritiva sobre a legítima.
Caso o testador falecesse entre 12.01.2003 – data de início da vigência do Código Civil de 2002 – e 11.01.2004, ainda que não tivesse havido compatibilização por parte daquele à exigência, as cláusulas restritivas sem justa causa permaneceriam eficazes, por força do disposto no art. 2.042 do Código Civil
Por outro lado, se o testador falecesse a partir de 11.01.2004 sem aditar seu testamento para fazer constar a justa causa das cláusulas restritivas a serem aplicadas sobre a legítima, essas cláusulas não prevaleceriam, entendendo o legislador que o prazo de adequação de um ano era suficiente para tanto e este decorreu em branco, sem que o testador tomasse alguma providência.
Apesar de soar como algo de um passado longínquo e que, decorridos quase 20 anos do início da vigência do Código Civil de 2002, os testadores que precisavam regularizar seus respectivos testamentos já o deveriam ter feito, temos notícia de que esse assunto ainda é questionado atualmente.
Uma herdeira, no interior do Rio Grande do Sul, com pais falecidos em 2013 e 2017, que teve seu quinhão da fração legítima gravado por cláusulas restritivas sem justa causa, arguiu em ação movida em 2018 a ineficácia dessas cláusulas, invocando-se o disposto no art. 2042 do Código Civil de 2002, já que os testadores não aditaram os respectivos testamentos para fazer constar a justa causa das restrições sobre a legítima.
Nesse caso, a ineficácia das cláusulas restritivas levou à invalidação completa do testamento (dispensando-se seu registro e cumprimento), uma vez que todas as demais disposições eram acessórias à cláusula declarada como ineficaz.
Vale a pena transcrever a ementa dessa decisão:
APELAÇÃO. SUCESSÕES. DECLARATÓRIA DE INEFICÁCIA DE TESTAMENTO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA RESTRIÇÃO DA HERANÇA LEGÍTIMA. DESNECESSIDADE DE REGISTRO E CUMPRIMENTO DO TESTAMENTO. Reconhecida a ineficácia das cláusulas testamentárias de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade da herança legítima da apelante, mostra-se desnecessária a ordem de registro e cumprimento do testamento, na medida em que todas as demais cláusulas são acessórias à cláusula declarada ineficaz. Consequentemente, procede o pedido de reconhecimento de ineficácia total do testamento, permitindo à apelante proceder o inventário extrajudicial, caso queira. (TJRS, AC: 70084012350, julgamento em 09.10.2020.
Apesar do decurso de tanto tempo do prazo de adequação dos testamentos elaborados antes do Código de 2002 com cláusulas restritivas sobre fração legítima do patrimônio, o caso concreto acima nos deixa o alerta para verificarmos a adequação das disposições testamentárias lavradas antes do “novo” Código Civil, em face do disposto em seu art. 2042.
[1] Art. 1.848. Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.
Priscila Lucenti Estevam é contadora e advogada especializada em planejamento patrimonial e sucessório, e coautora do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos, Tributação da Economia Digital no Brasil, e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.
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