No ano de 2015, alguns municípios iniciaram a cobrança de ITBI, sobre o que chamavam de “excedente”, nas transferências de imóveis por pessoas físicas para pessoas jurídicas a título de realização de capital. Coincidência ou não, no mesmo ano em foi reconhecida a repercussão geral do RE 796.376 pelo Supremo Tribunal Federal. Com o julgamento recente deste RE pelo do STF, muita confusão tem surgido sobre a intepretação dada pela Suprema Corte e é sobre isso que trataremos neste artigo.
O “excedente”, segundo os municípios, é a diferença entre o valor atribuído ao imóvel pela pessoa física no momento da integralização (transferência para pessoa jurídica) e o valor venal de referência. Com base nesta definição, os municípios passaram a emitir guias de imunidade transitória ou declaração de imunidade/não incidência de ITBI de forma parcial. Ou seja, a guia de imunidade era emitida somente para o valor atribuído no ato da integralização; sobre o remanescente relativo ao valor venal de referência, várias municipalidades passaram a cobrar o imposto, sob argumento de que esta diferença não estava amparada pela norma constitucional imunitória, prevista no artigo 156, inciso II, §2º, inciso I[1] e no artigo 36, inciso I do CTN[2].
Passados cinco anos do reconhecimento da repercussão geral, o RE 796.376 foi julgado pela Supremo Tribunal Federal, sendo reconhecida a imunidade do ITBI apenas do valor do imóvel utilizado para realização do capital social, devendo o valor que excede ser tributado pelos municípios.
A confusão iniciada em 2015 foi intensificada após esse julgamento, pois os municípios, além de todo argumento para cobrança sobre o excedente, passaram a fundamenta-la no acórdão do RE 796.376, aduzindo estar a questão pacificada pelo STF. E não foram só os municípios; parte da jurisprudência de primeira instância tem corroborado do mesmo entendimento equivocado, indo na contramão de uma das principais intenções do legislador ao redigir a norma, que era o incentivo para o empreender do Produtor Rural.
Ora, não há como o Supremo ter pacificado a questão suscitada se a cobrança de ITBI pelos municípios sobre a diferença entre o valor atribuído ao imóvel pela pessoa física no momento da integralização no capital social da pessoa jurídica e o valor venal de referência nem de longe foi o tema do julgamento.
Imprescindível tecermos algumas considerações acerca do tema realmente enfrentado no referido recurso.
Oriundo do TJ/SC, o caso versa sobre sócios de uma sociedade de participações que, no momento da constituição, definiram que o capital social seria de R$ 24.000,00 e a integralização se daria por meio de dezessete imóveis. Decidiram, ainda, que esta operação se daria pelo valor contábil que somava R$ 802.724,00.
Para que o capital social contasse somente com o valor de R$ 24.000,00, os sócios alocaram a diferença do valor contábil dos imóveis no importe de R$ 778.724,00 na conta reserva de capital da empresa. Oportuno frisar que o “excedente” que o julgado trata é justamente essa diferença alocada na reserva de capital e que, segundo a maioria do Supremo, não se enquadra dentro da norma imunitória, pois esta versa sobre imóveis incorporados tão somente para realização de capital.
Veja, estamos tratando de um valor contábil eleito pelos sócios/contribuintes, mas que decidiram dar duas destinações, quais sejam: (1) realização de capital e (2) reserva de capital. Em nenhum momento, o caso julgado pela Suprema Corte versou sobre um valor a maior (excedente) por avaliação de terceiro ou de valor venal de referência, como querem fazer crer vários municípios Brasil afora.
A Constituição Federal é cristalina ao atribuir imunidade a operação de integralização de imóvel para realização de capital, o valor (contábil ou de mercado) eleito pelo sócio para essa integralização, conforme faculdade legal prevista nos arts. 23 da Lei nº 9.249/95[3] e 142 do Decreto nº 9.580/18 (RIR 2018)[4], não condiciona, nem tampouco restringe, a norma imunitória.
A interpretação dos municípios acerca do tema e, via de consequência, a conduta de tributar o contribuinte em operação imune, além de ilegal e inconstitucional, fere os princípios da hierarquia das leis e da legalidade tributária. Nota-se que a ânsia de arrecadar tem fechado os olhos do ente público, levando-o a vergastar todos os preceitos legais acerca do tema, desde a Constituição Federal até a legislação municipal.
Sempre que houver contraste entre o ato do ente público com a previsão constitucional, o controle jurisdicional deverá ser invocado. Acontece que, a falta de profundidade da análise pelo Judiciário tem ratificado a ilegalidade praticada pelos municípios enquanto deveria coibi-la e trazê-la para o trilho legal.
Logo, espera-se do Poder Judiciário o controle dessa clara inconstitucionalidade praticada diariamente pelos municípios de todo país, seja em primeira, segunda ou terceira instância, visto que a integralização de imóvel para realização de capital de pessoa jurídica, seja a valor contábil ou a valor de mercado, não deve sofrer tributação de ITBI, e o julgamento do RE 796.376 jamais deve fundamentar essa exigência, pois versa sobre situação completamente distinta.
Brunna Fernanda Reis, é advogada em Sorriso/MT e consultora em organização societária e governança em empresas familiares do agronegócio.
[1] “Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;
(…) § 2º – O imposto previsto no inciso II:
I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil; (…)”
[2] Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:
I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;”
[3] Art. 23. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.
§ 1º Se a entrega for feita pelo valor constante da declaração de bens, as pessoas físicas deverão lançar nesta declaração as ações ou quotas subscritas pelo mesmo valor dos bens ou direitos transferidos, não se aplicando o disposto no art. 60 do Decreto-Lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977, e no art. 20, II, do Decreto-Lei nº 2.065, de 26 de outubro de 1983.
§ 2º Se a transferência não se fizer pelo valor constante da declaração de bens, a diferença a maior será tributável como ganho de capital.
4 Art. 142. As pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos, pelo valor constante da declaração de bens ou pelo valor de mercado (Lei nº 9.249, de 1995, art. 23, caput).
§ 1º Se a transferência for feita pelo valor constante da declaração de bens, as pessoas físicas deverão lançar nessa declaração as ações ou as quotas subscritas pelo mesmo valor dos bens ou dos direitos transferidos, hipótese em que não presumida a distribuição disfarçada de que trata o art. 528 (Lei nº 9.249, de 1995, art. 23, § 1º).
§ 2º Se a transferência não se fizer pelo valor constante da declaração de bens, a diferença a maior será tributável como ganho de capital (Lei nº 9.249, de 1995, art. 23, § 2º).