Por David Roberto R. Soares da Silva
A Parte 2 desse trabalho aborda as regras de imposto de renda aplicáveis às operações envolvendo trusts instituídos no exterior, contempladas no Projeto de Lei Complementar nº 145/2022 (PLP 145), de autoria do deputado Eduardo Cury.
A Parte 1 tratou dos conceitos adotados pelo PLP 145, assim como os aspectos relativos ao imposto sobre transmissão causa mortis e doações (ITCMD, ITCD ou ITD) e ITBI, nas operações com imóvel.
São diversos os aspectos de imposto de renda (IR) abordados pelo PLP 145 e, por isso, vamos tratá-los separadamente.
A. Transferências de bens e direitos ao trust
Para a transferência de bens e direitos do instituidor ao trust, o PLP 145 adotou a mesma regra já utilizada para a conferência de bens e direitos ao capital de pessoa jurídica, prevista no Art. 23 da Lei nº 9.249/1995. Ou seja, o instituidor poderá transferir bens e direitos para a formação do patrimônio do trust pelo valor dos bens constantes de sua Declaração de Imposto de Renda ou pelo valor de mercado.
Se a transferência ocorrer pelo valor da declaração, não haverá imposto de renda; por outro lado, se ela ocorrer pelo valor de mercado de bens, o instituidor deverá apurar ganho de capital de acordo com as regras então vigentes (alíquotas de 15% a 22,5%). Aqui, vale ressaltar, o contribuinte deverá a existência de oportunidade tributária no caso de conferência de bens imóveis, especialmente aqueles em seu poder há muito tempo e que possam se beneficiar de vantajosos percentuais de redução ou isenção de IR. Se esse for o caso, a transferência do imóvel ao trust por valor de mercado pode se revelar vantajosa, ainda mais que essa transferência, de acordo com o PLP 145, não estarão sujeitam ao ITCMD ou ao ITBI.
O mesmo tratamento é aplicável ao instituidor que não seja residente no Brasil, desde que se possa comprovar o custo de aquisição do bem. Mas vale a ressalva de que esse instituidor não residente não gozará dos percentuais de redução ou isenção de IR na transmissão de imóveis ao trust a valor de mercado, dados que esse benefício somente se aplica aos residentes no país.
B. Aquisição e declaração de direitos sobre o patrimônio do trust pelo beneficiário
Até que venha a receber direito incondicional e imediato a qualquer parcela do patrimônio do trust, o beneficiário potencial não deverá declarar qualquer valor ou bem na sua declaração de imposto de renda.
A obrigação de declaração somente ocorrerá a partir do momento da aquisição de direito incondicional e imediato de algum patrimônio, momento a partir do qual deixa de ser um beneficiário potencial e passa a ser um beneficiário efetivo. Veja que essa regra não se aplica às distribuições em dinheiro, mas apenas à aquisição da condição de beneficiário efetivo do trust.
Exemplo dessa situação parece ser a de um instituidor (João) que falece determinando que, após sua morte, o trust passará a ter como beneficiários os seus três filhos (Zezinho, Huguinho e Luisinho) em partes iguais. Nesse caso, de acordo com nossa análise preliminar, os três filhos parecem adquirir a condição de beneficiários efetivos do trust¸ devendo declarar 1/3 cada um do patrimônio do trust originalmente declarado por João. E nesse momento o ITCMD poderá ser devido, a depender das regras do trust. Assim, se o trust de João tiver sido constituído originalmente com R$ 3 milhões (valor da sua declaração), deverá ser declarado por Zezinho, Huguinho e Luisinho à razão de R$ 1 milhão cada, ainda que o patrimônio real do trust (em razão de ganhos e rendimentos apurados ao longo dos anos) seja diferente.
De acordo com o PLP 145, o beneficiário efetivo “deverá informar o direito sobre tal parcela do patrimônio do trust na sua declaração de bens correspondente ao ano-calendário em que ocorra essa aquisição”. (Art. 12).
O valor do acréscimo patrimonial decorrente da aquisição de direito incondicional e imediato sobre alguma parcela do patrimônio do trust será tratado como doação, tributada pelo ITCMD, e isenta de imposto de renda, no caso de beneficiário pessoa física. No caso de beneficiário pessoa jurídica, o acréscimo patrimonial verificado receberá o tratado tributável aplicável às doações recebidas por pessoa jurídica.
C. Distribuições em dinheiro
No momento da distribuição de dinheiro pelo trust, o PLP 145 determina uma segregação entre o valor do “capital” originalmente transferido pelo instituidor ao trust e os resultados positivos do trust (exemplo: ganhos, rendimentos etc.). O valor do “capital” será tratado como uma espécie de redução de capital, não sujeito ao IR até o limite declarado pelo beneficiário efetivo. O valor atribuído aos rendimentos será tributado pelo imposto de renda de acordo com a tabela progressiva (Carnê-Leão) (Art. 13).
Voltando ao exemplo de João, assumamos que seu trust constituído originalmente com R$ 3 milhões tenha R$ 3,6 milhões na data da sua morte (R$ 600 mil gerados por rendimentos e ganhos desde a constituição do trust). Zezinho, Huguinho e Luisinho deverão declarar R$ 1 milhão cada em suas declarações de IR. Agora, imaginemos que o trust resolve fazer uma distribuição de 50% do seu patrimônio em dinheiro a Zezinho, Huguinho e Luisinho, no valor total de R$ 1,8 milhão.
De acordo com o PLP 145, Zezinho, Huguinho e Luisinho receberão R$ 600 mil cada um, cujo tratamento tributário deverá ser o seguinte:
- R$ 500 mil (50% de R$ 1 milhão declarado por cada beneficiário) serão considerados ‘resgate’ do capital original e não sofrerá tributação pelo IR; e
- R$ 100 mil (50% de 1/3 de R$ 600 mil = rendimentos) será considerado rendimento tributável sujeito ao IR mensal (Carnê-Leão).
Nesse caso, Zezinho, Huguinho e Luisinho pagariam, cada um, R$ 26.630,64 de IR sobre os R$ 100 mil que receberiam, de acordo com a tabela progressiva vigente em 2022. Mas vale lembrar que eles já teriam pagado ITCMD sobre a parcela de R$ 1 milhão do capital original quando se tornaram beneficiários efetivos do trust.
O PLP 145 esclarece que os rendimentos e acréscimos verificados dentro do trust (ex., rendimentos e ganhos) não serão tributados na pessoa beneficiário efetivo até que forem efetivamente distribuídos em dinheiro. Na prática, o PLP 145 permite o diferimento da tributação dos rendimentos do trust até que ocorra algum evento de distribuição de dinheiro aos beneficiários. É um tratamento parecido, mas não idêntico ao que ocorre hoje com a distribuição de lucros de uma offshore.
Outro aspecto interessante diz respeito às distribuições aos beneficiários “em decorrência da extinção do trust”, para as quais é adotado um tratamento diferenciado (Art. 13, §§ 5º e 6º). Nessa situação, o PLP 145 determina que os valores pagos “serão integralmente imputados a resgate de capital originário do trust, reduzindo o valor de aquisição dos respectivos direitos constante na declaração de bens ou nos registros contábeis do beneficiário efetivo”. Eventual excesso de distribuição, por sua vez, será tratado como ganho de capital e não como rendimento tributável.
Voltando ao caso Zezinho, Huguinho e Luisinho, imaginemos que em um momento posterior à primeira distribuição, o trust fosse extinto e ainda mantivesse o patrimônio de R$ 1,8 milhão (R$ 1,5 milhão de capital original e R$ 300 mil de rendimentos). Nesse caso, a tributação seria a seguinte:
- R$ 500 mil (saldo remanescente declarado por cada beneficiário) serão considerados ‘resgate’ total do capital original e não sofrerá tributação pelo IR; e
- R$ 100 mil (1/3 de R$ 300 mil = rendimentos) será considerado ganho de capital (e não rendimento tributável).
Nesse caso, Zezinho, Huguinho e Luisinho pagariam, cada um, R$ 15.000 de IR sobre o ganho de capital de R$ 100 mil que receberiam, não sendo aplicável a tabela progressiva do Carnê-Leão porque o trust está sendo extinto.
No entanto, esse tratamento de ganho de capital somente será mantido se não for constituição de novo trust no prazo de 24 meses contados da extinção do primeiro trust (Art. 13, § 7). O PLP 145 não é claro sobre quem seria o instituidor desse novo trust, mas o lógico seria pensar que se tratasse do mesmo instituidor original. Isso faz sentido para que se coíba práticas abusivas de, reiteradamente, instituir-se trusts para posteriormente extingui-los, tratando seus acréscimos patrimoniais como ganhos de capital (menor tributação) e não como rendimentos tributáveis.
D. Entrega de bens ou direitos do trust
De forma similar ao que ocorre com a entrega de bens de pessoa jurídica ao seu sócio (Lei nº 9.249/1995, Art. 22), o PLP 145 permite que a entrega de bens do trust ao beneficiário efetivo seja feita pelo valor de aquisição ou de mercado, desde que não vedado pela lei que rege o trust (Art. 14).
No caso de transferência realizada pelo valor de aquisição, os bens ou direitos recebidos por beneficiário efetivo residente no Brasil serão declarados ou registrados, no respectivo ano-base, pelo valor de aquisição avaliado pelo trust.
Já com relação às transferências feitas por valor de mercado, o PLP 145 faz uma distinção entre a entrega de bens localizados no Brasil ou no exterior.
Para bens localizados no Brasil:
- a diferença a maior entre o valor de mercado e o valor de aquisição dos bens ou direitos entregues será tratada como ganho de capital do trust, e tribtado pelo IR de acordo com as regras de pessoa física residente (15% a 22,5%), ficando o procurador do trust no Brasil responsável pela retenção e pagamento do IR;
- os bens ou direitos recebidos por beneficiário efetivo residente no Brasil serão declarados ou registrados, no respectivo ano-base, pelo valor de mercado avaliado pelo trust;
- a diferença entre o valor de mercado dos bens e direitos recebidos e o valor de aquisição dos direitos correspondentes ao capital resgatado, constante da declaração de bens ou dos registros contábeis do beneficiário efetivo residente no Brasil, não será computada na base de cálculo do imposto de renda devido pelo beneficiário efetivo.
Interessante notar que, no item 1 acima, o PLP 145 considera que o ganho de capital ocorreu no Brasil e aplicando o tratamento de IR de pessoa física (15% a 22,5%), ainda que o trust seja domiciliado ou regido por lei de um país com tributação favorecida, cuja alíquota de ganho de capital é de 25%.
Já nas transferências a valor de mercado de bens localizados no exterior, o beneficiário efetivo residente no Brasil deverá adotar o seguinte tratamento:
- para equivalentes de caixa e outros ativos de alta liquidez, será considerado como seu valor de aquisição o valor pelo qual houverem sido recebidos, e tributada a diferença positiva entre este e o valor de aquisição dos direitos correspondentes ao capital resgatado na forma de ganho de capital, de acordo com a legislação ordinária em vigor; e
- para os demais ativos, de menor liquidez, será considerado como seu valor de aquisição o mesmo valor de aquisição dos direitos correspondentes ao capital resgatado.
É de se notar, por oportuno, que da base de cálculo dessas transferências a valor de mercado deverá ser deduzida a parcela do acréscimo patrimonial que o beneficiário efetivo já ofereceu à tributação pelo ITCMD quando se tornou beneficiário efetivo do trust.
Na venda subsequente de ativos de menor liquidez (item 2) pelo beneficiário efetivo, eventual diferença positiva será considerada ganho de capital.
F. Distribuição de resultados do trust
O PLP 145 contém uma seção específica para tratar de distribuições de resultados (rendimentos) do trust, ainda que as distribuições sejam feitas em bens ou direitos. Nesse caso, a regra geral é a de que o tratamento a ser dado a essas distribuições de resultado será de rendimento tributável sujeito ao Carnê-Leão mensal (Art. 15, § 1º).
Todavia, se a distribuição de resultados se der em bens localizados no Brasil e a valor de mercado, o tratamento será o seguinte:
- valor do custo de aquisição do bem localizado no Brasil (como consta dos registros do trust): rendimento tributável (Carnê-Leão);
- diferença a maior acima do valor do custo de aquisição: ganho de capital (tributação definitiva).
G. Revogação do trust
No caso de revogação do trust com o retorno do patrimônio ao instituidor, o tratamento tributário será o seguinte:
- no caso de bens imóveis, poderá ser necessário o pagamento do ITBI (Art. 10, inciso II);
- ganho de capital sobre o excedente do capital original que vier a ser recebido pelo instituidor, salvo se constituir novo trust dentro do prazo de 24 meses, onde então o tratamento de ganho de capital será alterado para rendimento tributável sujeito ao Carnê-Leão.
H. Declaração de capitais brasileiros no exterior
Por fim, o PLP 145 traz norma atinente à declaração de capitais brasileiros no exterior – DCBE, exigindo a entrega dessa declaração ao Banco Central a partir do exercício em que o beneficiário adquiriu acesso incondicional e imediato sobre qualquer parcela do patrimônio do trust em valor igual ou superior a USD 1 milhão em 31 de dezembro.
Conclusões (preliminares) sobre o PLP 145
As regras propostas no PLP 145 são, sem dúvida nenhuma, inovadoras e trazem segurança jurídica às operações envolvendo trust estrangeiros. O primeiro passo foi dado, mas o caminho até o destino é longo e desafiador.
Em linhas gerais, o PLP 145 é muito bom, mas falha em alguns aspectos.
O primeiro deles é se limitar apenas ao trust, deixando de considerar a fundação privada estrangeira, que é utilizada de maneira similar. Nada obstaria que durante sua tramitação as fundações fossem incluídas para permitir um tratamento tributário similar a estruturas similares e com funções idênticas.
Não sendo incluídas as fundações, corre-se o risco de abrir uma oportunidade de planejamento, dado que o PLP 145 autoriza a incidência de ITCMD apenas para operações envolvendo trusts, não o fazendo com relação às fundações. Na falta de legislação complementar que inclua as fundações estrangeiras, as distribuições feitas por elas poderiam, em tese, estar livres da incidência do imposto estadual, dado que o PLP 145 cria fato gerador apenas para operações com trusts.
Outro ponto obscuro no PLP 145 é com relação às transferências de patrimônio para estruturas irrevogáveis. A leitura do PLP 145 parece considerar apenas trusts revogáveis. Esse aspecto é importante, pois transferências para trusts irrevogáveis poderiam ser consideradas doações ao exterior para fins de incidência de imposto de renda na fonte (IRRF). Isso porque, ao transferir patrimônio a um trust irrevogável, o instituidor deixa de acesso e controle sobre o bem (tal como uma doação), ficando sem poder de retomá-lo, dada a irrevogabilidade da estrutura.
Desde a edição do Regulamento do Imposto de Renda de 2018, a Receita Federal tem entendido que doações ao exterior não mais estão isentas de IRRF. Assim, a instituição de um trust irrevogável com conferência de bens localizados no Brasil poderia ser entendida como uma doação ao exterior sujeita ao IRRF de 15% ou de 25% se o trust estiver localizado em paraíso fiscal.
Ainda estamos dando os primeiros passos na análise do PLP 145 e, certamente, outras considerações serão feitas na medida em que se aprofundem os estudos e discussões.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2020), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos publicados pela Editora B18.
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