Ao leitor, certamente passou ou passa (e tomara, não venha a passar!) pela contemporaneidade dos relacionamentos amorosos. Não que os sentimentos tenham mudado, pois afeto, carinho, amor, continuam os mesmos, estando o imbróglio em como acessá-los, ou ao menos, reconhecê-los.
Numa de suas facetas mais incipientes, namorar é a porta de entrada para depurar sentimentos, sopesar afinidades e darmos passos rumo a algo mais concreto. E como relação pautada pelo afeto, não deve(ria) causar efeitos patrimoniais. É o que se busca explicar no presente ensaio, por meio do contrato de namoro.
O namoro, em tempos de outrora, era simples relacionamento com o intuito de conhecer um outro alguém. Nos aprofundarmos um pouco mais em outro ser, partindo rumo à consolidação do afeto. Nos enveredamos em outra pessoa nutridos por afinidade, mas nos construímos ainda mais como seres humanos, pois nos vemos mais no outro do que enxergamos a nós mesmos.
Antigamente, esse era o namoro. Agora, no mundo contemporâneo, essa união ganha novos contornos, onde talvez não esteja em jogo somente os interesses afetivos, mas os efeitos patrimoniais que essa união reflete.
Sim, pois, enquanto livre exercício de nossas liberdades individuais, temos autonomia para expressar o afeto como bem nos engrandeça. Somos livres para amar quem nos envaideça de sentir este nobre sentimento. A questão que surge é como esta expressão surge, e como o casal a enxerga, pois nem sempre os ânimos são equânimes entre os envolvidos no namoro.
Em uma das correntes que explica os porquês de nos envolvermos afetivamente, dá como ponto relevante a busca por algo que nos completa, algum fator de carência emocional ou afetiva, cujo outro possa nos ajudar a suprir. E calma, porque caso o leitor seja profissional da área de psicologia, certamente refutará essa linha argumentativa com todas as forças, pois delegarmos nossas carências a outrem acaba por lhe atribuir uma função árdua e destrutiva, face ao tamanho da responsabilidade carregada, e o relacionamento afetivo não deve se prestar a isso.
O fato é que, por vezes, tendemos a achar que a resposta para todas as nossas mazelas se encontra no outro, inclusive as financeiras. Sim, e sem problema algum que assim seja, pois cada um sabe onde a felicidade se encontra. Certa vez, uma jornalista abordou um grande empresário do ramo da soja, que contava com mais de 80 anos de idade, que costumava circular pelas noites com mulheres muito mais novas. Numa pergunta indigesta, questionou ao empresário: O senhor sabe que provavelmente esta moça está com o senhor em razão do seu dinheiro?”, e ele respondeu: “Veja bem, se eu me relacionasse com uma mulher da minha idade, ela também estaria comigo em função do meu dinheiro. Prefiro as mais novas”.
No caso acima, ambos têm interesse muito bem delimitados, claros e evidentes. Não há o escalonamento para algo mais sério, ficando as partes envolvidas muito bem resolvidas em seus propósitos. Ofereço o conforto, enquanto obtenho a jovialidade que me foi dada um dia ao meu lado, e está tudo certo. O problema é quando os envolvidos não têm o discernimento suficiente para delimitarem qual o desejo de cada um.
E aqui entra a funcionalidade de um contrato de namoro, instrumento ainda muito pouco trabalhado entre profissionais, e desconsiderado completamente por quem está nesta fase tão germinal do relacionamento. O nome é autoexplicativo: nada mais é que um acordo firmado entre os apaixonados (ou interessados, ou pretendentes…) que se delimita a esclarecer o objetivo dos que dele participam: namorar, e só. Mas por que isso? Justamente pelas futuras implicações financeiras que possam surgir quando o casal, desavisado, não tem a devida dimensão do papel de cada um, e da união do casal.
Pode parecer burocrático por algo tão simples, mas as razões não são gratuitas. Relações afetivas são, em seu fim último, a busca pela felicidade, a compactuação de interesses, que geram, também, efeitos patrimoniais que não podem ser desconsiderados. E o contrato de namoro é um instrumento delimitador do efeito patrimonial.
Pense que, no íntimo, cada um tem sua perspectiva do relacionamento. Quando a situação comporta dividir a mesma residência, então, para muitos, é quase uma união estável. Mas será mesmo que os pensamentos estão alinhados em direção à constituição de uma família? Será que alternar o convívio em lares diferentes torna o casal unido ao ponto de voltar os esforços ao plano matrimonial? E o que dizer das contas? Fazer uma compra de mercado em um momento de dificuldade financeira do outro, torna o outro, companheiro, do ponto de vista legal?
Lembremos que união estável é a convivência duradoura, pública e contínua, com o objetivo de construir uma vida em comum (“objetivo de constituir família”, na letra da lei). A coabitação, o relacionamento público, a estabilidade e continuidade, o compartilhamento de responsabilidades e filhos em comum são indícios que o casal tem vida em comum, mas nenhum deles, isoladamente, é capaz de definir a união estável. Cada caso é pesado singularmente, pois no campo dos afetos, de plano exclusivamente subjetivo, cada um sabe dos seus anseios.
O fato é que, para que haja um estabelecimento de acordo, é preciso diálogo entre as partes. A exposição dos interesses, das metas e desejos de cada um, beira o infindável. Neste campo seria possível a convenção em contrato que as partes possam ter relacionamentos extra acordo? Uma “infidelidade” ajustada? E uma multa pela infidelidade? A princípio, não vemos problema algum, pois, afinal, está-se no campo dos afetos, dos desejos, e por mais que nos custe entender, nossos parâmetros de felicidade não são os mesmos paradigmas utilizados pelos outros.
O que definitivamente não se pode considerar, é utilizar o contrato de namoro como escudo para a união estável. É o caso do rapaz, com receio de assumir as responsabilidades inerentes à vida conjugal, já com alguns ou todos os elementos que constituem uma união estável, tentar, via contrato de namoro, desconsiderar os efeitos que aquela união gera. Dito contrato é nulo de pleno direito, pois tem por objeto a dissimulação, a ilicitude de objeto, o engodo e o embuste.
Ainda são tímidas as decisões dos Tribunais de Justiça a respeito dos contratos de namoro. Em que pese de início não serem muito bem aceitos, aos poucos vêm sendo acolhidos, e vistos como parte da autonomia privada das partes que se relacionam. Afinal, se é possível escolher o regime de bens que regrará a união marital, muito mais “sério” e formal, pode-se demarcar com muito mais liberdade o início da união, ainda no período embrionário, quando o casal ainda não dispõe de propriedade nos desígnios do namoro.
A respeito, a recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que bem delimita os contornos do contrato de namoro:
(…)
“O documento acostado a fls. 20/21 é um contrato de namoro, não possuindo a natureza de contrato de união estável nem de pacto antenupcial. Ora, no momento em que as partes firmaram contrato de namoro fica evidente que não pretendiam constituir família com a união estável, tampouco compartilhar bens e obrigações. Tais contratos visam a proteção patrimonial dos apaixonados, afastando qualquer possibilidade de se confundir com a união estável que, sabidamente, gera efeitos patrimoniais”. Apelação nº 1007161-38.2019.8.26.0597, julgamento em 02.06.2021)
Veja que esse instrumento vem ganhando forma e estofo e, aos poucos, a consciência coletiva tende a mudar, deixando de enxergá-lo como algo abjeto, que põe o patrimônio frente ao afeto.
Em mundo em que, segundo o filósofo polonês Zygmunt Bauman, as relações sentimentais são pautadas por sua liquidez, rápidas e volúveis, e porque não dizer, amorfas, celebrar um acordo formal, em que cada uma das partes, de comum acordo, expõe seus pontos de vista, e o projeta para um futuro melhor organizado, é trazer muito mais solidez para os namoros.
Artur Francisco da Silva é advogado do departamento de wealth planning e tax do BLS Advogados, em São Paulo.
Namoro, união estável, regime de bens etc. são temas do nosso best-seller PLANEJAMENTO PATRIMONIAL: Família, Sucessão e Impostos.