Por Carlos Scholles
Se encarar um inventário no Brasil já costuma ser uma batalha ferrenha (quem já passou pela experiência que o diga), imagine ter que abrir um processo de sucessão no exterior? Com o acesso cada vez mais prático a contas no exterior, o investidor brasileiro precisa também se acostumar a procurar estruturas que facilitem a transmissão de patrimônio em caso do falecimento do titular.
Os desafios de herdar ativos no exterior são muitos.
Começamos o desafio pelo idioma. Ter que se comunicar com advogados no exterior em inglês já é um desafio e tanto. Agora, imagine precisarrealizar os trâmites em italiano ou japonês! Você provavelmente deixaria esta tarefa a cargo do seu advogado aqui no Brasil, mas ele certamente cobraria um bom valor por isto.
Os custos seriam um segundo fator perigoso para o patrimônioda família. Em países como França, Estados Unidos e Inglaterra, o imposto de transmissão por falecimento costuma girar em torno de metade do valor herdado. Aliado aos custos com certidões, apostilas, advogados e judiciais, a depender do valor da herança, pode-se consumir praticamente todo o patrimônio detido no exterior durante o processo.
Outro fator problemático para quem herda é a indisponibilidade dos ativos no exterior. Suponha que você tenha herdado R$ 1 milhão, metade aqui no Brasil e a outra metade nos Estados Unidos.
Da mesma forma que demora consideravelmente para que você tenha acesso aos recursos nacionais (de alguns meses a anos, caso não haja briga entre os herdeiros), em situações normais, os ativos no exterior somente ficarão disponíveis após autorização judicial de um tribunal probate, especializado em sucessões. Durante este período, a família fica sem acesso aos bens e a quaisquer proventos que venham a gerar. Caso a estratégia de alocação no exterior tivesse o objetivo de gerar renda em dólares, os herdeiros ficariam temporariamente desprovidos desta renda.
Falando assim, fica a impressão de que não vale a pena ter ativos no exterior, certo? Calma lá! Não só vale a pena, como é altamente recomendável tanto para a diversificação quanto para a preservação do patrimônio familiar.
Vamos então falar sobre ferramentas que mitigam ou até anulam os problemas que mencionei ali acima.
Como não podemos abordar uma sucessão completa e que sirva para todos os países do mundo, vamos nos ater aqui a instrumentos que auxiliem a herança de ativos financeiros no exterior. Como eles são muitos, abordaremos os três mais comuns disponíveis para brasileiros no mercado global: Transfer-on-Death, Trust e Private Investment Company.
Transfer-on-Death ou Payable-on-Death
Um TOD (Transfer-on-Death) ou POD (Payable-on-Death), é um mecanismo que permite ao titular de determinados bens e ativos designar os beneficiários que receberão os ativos diretamente no seu falecimento. É basicamente um contrato simples com as condições sob as quais os ativos serão transferidos às pessoas escolhidas.
Uma das possibilidades é a de listar beneficiários contingentes. Funciona assim: declaro que quero deixar meu patrimônio para meus dois filhos. Eles seriam os beneficiários principais. Então, determino que, após meu falecimento, caso algum deles também já tenha falecido, a parcela que seria direcionada a ele seja recebida pelo meu irmão (ou mesmo por uma instituição de caridade ou religiosa).
Principais vantagens
O TOD/POD é um documento que pode ser facilmente assinado e os beneficiários previstos nele alterados. Normalmente, basta preencher um formulário, com cláusulas já estabelecidas, e pronto. Trocar ou excluir beneficiários tem a mesma facilidade. Outra vantagem é o custo: zero, na maioria das instituições financeiras.
Principais desvantagens
Os bens transferíveis pelo TOD/POD são limitados. Em geral, o TOD/POD pode ser usado para transferir valores mobiliários (títulos, ações e fundos listados) e contas bancárias ou previdenciárias. Em alguns estados americanos, veículos, embarcações e imóveis também podem utilizar cláusulas TOD/POD.
Outro problema é que, apesar da rapidez na transmissão do patrimônio , o TOD/POD pode não isentar o herdeiro de obrigações fiscais sobre herança na jurisdição onde os bens estão registrados.
Para quem tem conta em outros países, como a Suíça, o TOD/POD não é admitido, sendo necessário, então, procurar outro mecanismo ou ferramenta sucessória.
Como implementar
Converse com o gerente do banco ou assessor de investimentos, ou acesse o site ou aplicativo da instituição onde estão os investimentos. O mais comum é o TOD ser padrão (ou seja, as cláusulas não podem ser alteradas), bastando preencher seus dados e os dos beneficiários.
Trust
Um trust também é um contrato, mas consideravelmente mais complexo do que um TOD. Existem muitas variedades de trust, mas aqui vamos falar da que tem se popularizado entre investidores brasileiros.
Trata-se de um trust financeiro (que comporta somente aplicações no mercado de capitais, e não bens físicos ou direitos) que, durante a vida do investidor, serve como uma espécie de conta de investimentos. Após sua morte, ele serve como instrumento de transferência dos ativos aos beneficiários.
Então, é um contrato ou uma conta? Pois bem, “trust” vem de “fiar”, “confiar”, “confiança”. Em um contrato destes, o investidor transfere os recursos a uma operadora de trusts (trustee) que, com base nas cláusulas pactuadas, fará a gestão do patrimônio. Há cobrança de taxas para esta gestão. Ao final do prazo ou no falecimento do titular, os recursos são devolvidos ao titular, ou entregue aos beneficiários, conforme o caso.
Entre as cláusulas, da mesma forma que em um Transfer-on-Death, constam aquelas que preveem para quem vão os recursos no falecimento do titular. A eleição de beneficiários é tão simples e fácil quanto em um TOD, com a vantagem adicional de eficiência tributária.
Por enquanto, as transferências causa mortis de dinheiro de um trust para os beneficiários não é tributada pelo IR, mas pode ser taxada pelo ITCMD em breve. A legislação tributária brasileira tem mudado muito ultimamente, sendo recomendável procurar assessoria jurídica adequada para validar esses aspectos. Com isso, evita-se surpresas inesperadas e desagradáveis.
Principais vantagens
Como a operadora de trusts costuma ser uma empresa de escala global, ela facilmente dá acesso para o investidor aos maiores mercados. Um trust também é uma ferramenta rápida e facilmente criada – caso os requisitos básicos sejam cumpridos, um trust é aberto em poucos dias.
Outra vantajosa é que, como os ativos são detidos pelo trustee, até que sejam resgatados e voltem para uma conta do investidor ou de seus beneficiários, ficam fortemente protegidos contra execuções judiciais.
Principais desvantagens
Em comparação com uma conta broker de corretora ou banco, o trust tem alguns custos adicionais. Normalmente, tem, ao menos, uma taxa de administração e uma taxa de apólice (aquela que garantirá que os recursos sejam transferidos aos beneficiários escolhidos).
Além disto, os recursos têm menor liquidez do que em uma conta de investimentos normal. Como os ativos são geridos pelo trustee e regidos pelas cláusulas contratuais pactuadas, eles só podem ser acessados sob condições específicas, que podem prever um prazo mínimo para resgate ou deságio para resgate antecipado.
Como implementar
Um consultor vinculado a um trustee pode abrir um trust para você. Procure um consultor habilitado, que coletará documentos e fará um application junto ao trustee no exterior. Caso o cadastro seja aprovado, os recursos podem ser enviados ao exterior para gestão, momento em que as cláusulas pactuadas efetivamente entram em vigor.
Private Investment Company
Também é conhecida como PIC, mas se popularizou com o nome de offshore. A PIC é uma empresa, cujo objeto social principal é o de deter e gerir o patrimônio e os investimentos de seus acionistas.
Em sua forma mais simples, detém apenas ativos financeiros e acessa mercados de capitais globais para rentabilizá-los. Em formas mais complexas, além de aplicações financeiras, pode deter imóveis, obras de arte, maquinário e diversos outros ativos físicos, além de ter funcionários para gerir os negócios e prestar consultoria de gestão tributária, contábil e de ativos, por exemplo.
Parece muito com um negócio, não é mesmo? Nesta modalidade mais complexa, é exatamente isto! Exige muita gestão e decisões de negócio para rentabilizar os ativos. Porém, como no caso de um trust, pode deter apenas ativos financeiros e ter sua gestão simplificada. Isto é com o investidor. O que mais nos interessa aqui é a questão de sucessão: como os bens são transferidos de forma inteligente para os herdeiros e beneficiários?
Uma PIC é constituída em um país com benefícios fiscaissuficientemente atrativos. Exemplos dos principais destinos com vantagens fiscais são Bahamas, Ilhas Virgens Britânicas, Suíça, Panamá e Luxemburgo. Existem literalmente dezenas deles, mas estes são muito comuns entre as escolhas dos brasileiros. A principal benefício buscado por investidores nestas jurisdições é transmissão isenta das ações da PIC.
Em uma PIC, os donos dos bens não são as pessoas físicas, mas a pessoa jurídica. O que os investidores detêm são as ações desta PJ. As estratégias de transmissão podem variar desde ceder as ações em vida para terceiros, assim transferindo, de forma indireta, a propriedade dos bens detidos pela empresa, até o direcionamento específico das ações para os beneficiários eleitos após o falecimento do cotista principal.
Em jurisdições onde a transmissão causa mortis das ações da PIC é isenta de impostos, a sucessão ocorre de forma ágil e eficiente em relação a custos. Além disto, sucessões nesta estrutura costumam evitar brigas e judicialização dos herdeiros, uma vez que os critérios de distribuição das cotas já estavam previamente determinados.
Principais vantagens
A versatilidade na gestão e transmissão de bens dentro de uma PIC não tem paralelo em outras soluções. O instituidor da PIC pode direcionar as ações da empresa com muita liberdade, tanto em vida quanto em caso de falecimento, através de cláusulas livremente customizadas e facilmente alteradas.
Apesar de os custos de criação e manutenção de uma PIC serem consideráveis, eles não crescem em proporção direta ao patrimônio, tornando-a uma opção cada vez mais barata conforme os bens da família crescem. Para valores na casa das dezenas de milhões de dólares, os custos se tornam ínfimos.
Principais desvantagens
A criação da PIC pode ser um pouco morosa, levando de algumas semanas a alguns meses. Sua administração e custos também podemser impeditivos para patrimônios menos vultosos. Não há critérios específicos, mas famílias com poucos milhões de dólares em bens podem perceber que os custos prejudicam o resultado de rentabilidade dos investimentos.
Como implementar
É necessário contratar os serviços de agente registrado no país da jurisdição escolhida para constituição da PIC. Este contato pode ser feito diretamente ou através de algum parceiro aqui no Brasil, como um escritório de advocacia, contabilidade ou um family office, especializado neste tipo de parceria.
Mas note que, a partir de 2024, a Lei nº 14.754/2023 passou a exigir que a contabilidade da PIC, na maioria dos casos, seja feita por contador brasileiro, além de estabelecer uma tributação anual de 15% sobre os lucros apurados. É recomendável que se consulte um especialista tributário antes de montar a PIC no exterior para entender as consequências legais e fiscais no Brasil.
Estes são apenas três dos muitos instrumentos disponíveis ao investidor global que pensa em cuidar bem da sucessão de seus ativos. Naturalmente, eles podem ser utilizados em conjunto, com objetivos e em momentos de vida diferentes.
O ideal é contar com um especializado acompanhamento constante para adaptar as mudanças da vida do investidor à ferramenta mais indicada para aquele momento. Se este não for seu caso, certifique-se de estudar muito e a fundo cada solução antes de implementá-la para sua família. Afinal, são o futuro dela e o seu legado que estão em jogo aqui.
Carlos Scholles é planejador financeiro pessoal (CFP®), e diretor de conhecimento e equity partner da Faz Capital, em Porto Alegre/RS.
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