Por David Roberto R. Soares da Silva
No mês de novembro de 2022, a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (SEFAZ), deflagrou a operação Vaisyas III, cujo objetivo é fiscalizar operações de doações de participações societárias. São esperadas milhares de intimações, que já começam a chegar aos contribuintes paulistas, exigindo atenção e cuidados.
Nas duas primeiras etapas da Vaisyas (I e II), a SEFAZ diz ter arrecadado mais de R$ 73 milhões. De acordo com a SEFAZ “os trabalhos do Fisco paulista consistem em auditorias de declarações de doação extrajudicial, nas quais se declarou transmissão de participações societárias incidentes de ITCMD (…). A operação tem previsão para ocorrer até julho de 2023 e a Sefaz-SP estima recuperar cerca de R$ 40 milhões aos cofres públicos (…)”[1].
O que está por trás dessa operação é a tentativa de o fisco paulista em questionar doações de participações societárias, especialmente empresas de capital fechado (incluindo limitadas) com a finalidade de revisar o valor atribuído às quotas. Esse movimento se intensificou a partir de 2021, quando a SEFAZ se manifestou formalmente de que a base de cálculo do ITCMD na doação de participações societárias é o valor de mercado do bem e não o seu valor patrimonial (Resposta à Consulta nº 24429).
Na Resposta à Consulta nº 24429, de outubro de 2021, o fisco paulista entendeu que “a noção de valor patrimonial não se restringe à análise do patrimônio líquido da empresa. Como se não bastasse a infinidade de elementos necessários para se atribuir valor às participações societárias, o próprio elemento “valor patrimonial” não é conceito único, se dividindo em valor patrimonial contábil e valor patrimonial real.”
Na Resposta à Consulta, o fisco concluiu que a base de cálculo do ITCMD na doação de quotas ou ações de S/A de capital fechado deve ser o seu valor de mercado, podendo ser admitido o valor patrimonial desde que se leve em conta o valor patrimonial real, ou seja, aquele que mais se aproxima do valor de mercado.
No entanto, não é isso que estabelece a legislação. O Art. 14 da Lei nº 10.705/2000 dispõe sobre diferentes formas de determinar a base de cálculo do ITCMD/SP. No caso de ações de S/As de capital fechado e quotas de sociedade limitadas, vale destacar o disposto no § 3º do Art. 14. Vejamos sua redação integral:
“Art. 14. No caso de bem móvel ou direito não abrangido pelo disposto nos artigos 9°, 10 e 13, a base de cálculo é o valor corrente de mercado do bem, título, crédito ou direito, na data da transmissão ou do ato translativo.
§ 1º – À falta do valor de que trata este artigo, admitir-se-á o que for declarado pelo interessado, ressalvada a revisão do lançamento pela autoridade competente, nos termos do artigo 11.
§ 2º – O valor das ações representativas do capital de sociedades é determinado segundo a sua cotação média alcançada na Bolsa de Valores, na data da transmissão, ou na imediatamente anterior, quando não houver pregão ou quando a mesma não tiver sido negociada naquele dia, regredindo-se, se for o caso, até o máximo de 180 (cento e oitenta) dias. (NR)
§ 3º – Nos casos em que a ação, quota, participação ou qualquer título representativo do capital social não for objeto de negociação ou não tiver sido negociado nos últimos 180 (cento e oitenta) dias, admitir-se-á o respectivo valor patrimonial.“
O § 3º do Art. 14 é claro ao possibilitar a adoção do valor patrimonial (contábil) das quotas e ações de S/A de capital fechado, não havendo qualquer menção a um suposto valor patrimonial “real”. Dessa forma, se a lei não estabelece essa condição, não cabe ao aplicador da lei (o fisco) fazê-lo.
É oportuno ressaltar que a atual redação do § 3º do Art. 14 da Lei nº 10.705/2000 foi dada pela Lei nº 10.992/2001, com efeitos a partir de 1º de janeiro de 2002. Ou seja, está em vigor há mais de 20 anos.
Nessas mais de duas décadas, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) foi chamado a se manifestar sobre as tentativas do fisco paulista em exigir o ITCMD/SP sobre doação de quotas ou ações em valores diferentes do valor patrimonial contábil.
Na grande maioria das vezes, o TJSP se posicionou favoravelmente aos contribuintes, admitindo o uso do valor patrimonial contábil como base de cálculo do ITCMD.
Vale transcrever algumas decisões recentes:
“ITCMD — Doação de quotas sociais — Divergência entre o contribuinte e o fisco paulista a respeito da base de cálculo do ITCMD no caso de doação de quotas de empresa limitada — Artigo 14, Lei Estadual 10.705/00 – Base de cálculo do ITCMD que corresponde ao valor patrimonial, no caso de inexistência de negociação das quotas — Valor patrimonial que é o patrimônio líquido dividido entre a quantidade de quotas representativas do capital social integralizado – Conceito extraído da Lei nº 6.404/76 e estabelecido pelo Banco Central — Sentença reformada — Recurso da autora parcialmente provido” (Apelação Cível nº 1018552-78.2018.8.26.0482, julgamento em 21.06.2021)
“RECURSO OFICIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. ITCMD. TRANSMISSÃO DE QUOTAS DE SOCIEDADE LIMITADA. DOAÇÃO. AUTO DE INFRAÇÃO E IMPOSIÇÃO DE MULTA. PRETENSÃO À NULIDADE DO REFERIDO DÉBITO TRIBUTÁRIO. POSSIBILIDADE.
1. A base de cálculo do ITCMD, na transmissão de quotas da sociedade limitada, por meio de doação, na hipótese de não comercialização na bolsa de valores (…) corresponde ao respectivo valor patrimonial contábil.
2. Consideração, para fins de avaliação, o patrimônio líquido da sociedade empresarial, e não, aquele utilizado para a integralização do capital social.
3. Inteligência do artigo 14, § 3º, da Lei Estadual nº 10.705/00. (…)
5. Ofensa a direito líquido e certo, passível de reconhecimento e correção, caracterizada. (…)
8. Recurso oficial, desprovido” (Remessa Necessária Cível 1026739-07.2020.8.26.0482, julgamento em 27.09.2021)
Mais recentemente, outro julgado do TJSP foi ainda mais claro:
“ITCMD. Base de cálculo. Doação de quotas sociais. Tributo que deve ser recolhido com base no valor patrimonial contábil das quotas sociais doadas. Pretensão do fisco de utilizar o valor atualizado dos imóveis que integram o patrimônio da empresa transferida. Impossibilidade. Observância do art. 14, § 3º, da Lei nº 10.705/00. Precedentes. Sentença mantida. Reexame necessário e recurso voluntário” (Apelação nº 1022005-13.2020.8.26.0482, julgamento em 10.03.2022.
Há vários outros julgados no mesmo sentido no TJSP.
A mensagem que fica àqueles que estejam recebendo intimações é a de que a pretensão do fisco de “atualizar” o valor das doações de quotas e ações de S/As fechadas de acordo com o “valor patrimonial real” ou valor de mercado dos bens da empresa é ilegal.
A valoração das doações tendo como base o valor patrimonial das participações societárias tem sido assegurada pela Justiça Paulista. Qualquer intimação, abertura de fiscalização ou auto de infração deve ser cuidadosamente acompanhada para minimizar os dissabores com as ilegais investidas fiscais.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2020), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos publicados pela Editora B18.
[1] https://portal.fazenda.sp.gov.br/Noticias/Paginas/Sefaz-SP-deflagra-Vaisyas-III-contra-sonega%C3%A7%C3%A3o-fiscal-de-ITCMD.aspx
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