Em recente decisão, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), reconheceu que, nos casos de reconhecimento de paternidade após a morte do doador, o prazo para o herdeiro preterido requerer a anulação da doação só se inicia a partir da sentença de ação de investigação de paternidade, quando é decretada sua filiação, sendo confirmada sua condição de herdeiro.
Antes de adentrar especificamente no caso, vamos deixar alguns termos acima mais claros. Sobre o herdeiro preterido, é aquele desfavorecido, esquecido ou desconhecido, e que tem direito a parte da herança. E para exercer seu direito, faz ele uso da ação de petição de herança.
Sobre o reconhecimento da paternidade e a respectiva ação, um exemplo vai deixar a situação mais clara: em meados das décadas de 1990/2000, era comum programas de televisão exibirem testes de DNA, onde mães “intimavam” os pais a assumirem crianças tidas fora da relação entre marido e mulher – relação extraconjugal. O apresentador chamava o casal, abria o exame em pleno auditório, e “decretava” ali se o rapaz era ou não o pai da criança. Guardadas as proporções – e a exposição/sensacionalismo, é exatamente o que acontece quando o assunto é trazido para o Judiciário.
Agora, imaginem que uma pessoa já adulta, indignada por nunca ter sido reconhecida como filha, convida seu pai a comparecer ao programa televiso, só que, para seu espanto, além dele ter falecido, descobre que doou todos os seus bens aos meios-irmãos, não respeitando sua parte na herança. O que acontece? É o que veremos a seguir, sem os holofotes da TV, claro.
No caso julgado, um homem doou para os seus três filhos uma fazenda e, após seu falecimento, sua outra filha, que foi havida fora do casamento, teve a sua filiação reconhecida em ação de paternidade pós morte. Nesse sentido, a herdeira excluída ajuizou ação anulatória de doação inoficiosa (ineficaz) em face de seus irmãos, requerendo a nulidade de partilha, cumulada com petição de herança.
Quando o processo foi analisado em segunda instância, os filhos que receberam a doação – donatários, alegaram que o pedido da irmã havia prescrito, pois passados mais de 20 anos entre a doação do imóvel, feita em 14/09/1987, e o pedido de anulação, requerido em 26/08/2010. Lembrando que a prescrição aqui considerada foi a do antigo Código Civil, chamada de prescrição vintenária (20 anos). O Tribunal de Justiça de Minas Gerais não entendeu desse modo, e manteve a anulação do ato, chegando o processo ao Superior Tribunal de Justiça.
Segundo o STJ, que também negou provimento ao recurso dos herdeiros/donatários, nas hipóteses de reconhecimento post mortem da paternidade, o prazo para o herdeiro prejudicado buscar a nulidade da doação, se inicia a partir do trânsito em julgado da sentença proferida na ação de investigação de paternidade, a qual confirma a sua condição como herdeiro.
Vale transcrever trecho do acordão:
“In casu, portanto, o marco inicial para contagem da prescrição vintenária deve mesmo ser a data em que foi declarada paternidade da recorrida, como reconhecido pelo Tribunal a quo, e não a data do registro da escritura da doação. Nessa medida, não há que se falar em prescrição.” (Resp nº 1.605.483/MG, 3ª Turma STJ, Ministro Relator Paulo de Tarso Sanseverino, DJE 23/02/2021).
Conforme o entendimento da Corte, não existe prescrição enquanto o direito subjetivo do sujeito ainda não foi reconhecido. Como menciona o acordão:
“A supramencionada teoria foi acertadamente aplicada pelo Tribunal de origem, que, ao afastar a preliminar de mérito de prescrição, assentou que antes da formação do vínculo de filiação, inexiste ação a prescrever, pois ainda não nascera à apelada a possibilidade de postular direitos hereditários pelo falecimento do autor da herança, que, e apenas posteriormente, foi reconhecido como seu pai”. (Resp nº 1.605.483/MG, 3ª Turma STJ, Ministro Relator Paulo de Tarso Sanseverino, DJE 23/02/2021).
Diante deste cenário, a doação inoficiosa, nos termos do art. 549 do Código Civil, é aquela que excede a parte que o doador poderia dispor em testamento, prejudicando a legítima, que é a quota da herança pertencente aos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge).
Nesse viés, pela regra, aquele que se viu prejudicado pela doação, possui o prazo de vinte anos – Código Civil de 1916, contados a partir do registro da doação, para ajuizar a ação de nulidade. Com a exceção de herdeiro ainda não reconhecido, onde o prazo para impugnação passa a correr a partir do reconhecimento da paternidade, com base na citada jurisprudência do STJ.
Vale lembrar que a doação feita entre ascendente e descendente é válida, e não exige a anuência expressa dos outros descendentes, diferentemente da compra e venda, que exige a anuência de todos os herdeiros.
No entanto, a doação de um pai ou uma mãe para o filho, pode gerar alguns efeitos jurídicos, como:
i) Ser considerada uma antecipação da legítima, onde o herdeiro recebe, antecipadamente, a parte que lhe cabe da herança. Nessa hipótese, o herdeiro donatário deverá trazer a doação realizada à colação no processo de inventário, com o intuito de igualar o seu quinhão com os demais herdeiros;
ii) Ser considerada uma doação dispensada de colação, onde o doador, através de testamento ou no próprio instrumento de doação, afirma que o bem doado pertencia à parte disponível do seu patrimônio, não alcançando, portanto, a legítima, e;
iii) Ser considerada uma doação inoficiosa, logo, nula por ultrapassar a parte disponível do patrimônio do doador, ferindo assim, a legítima dos demais herdeiros necessários.
Dessa maneira, não é preciso haver motivos específicos para um pai ou uma mãe destinar parte de seus bens para os filhos, por meio da doação. Desde que, tal ato jurídico respeite alguns limites legais, para que a cessão seja perfeitamente efetivada e válida.
Ana Bárbara Zillo é advogada do departamento de wealth planning do Battella, Lasmar & Silva Advogados.