Por Karina Jabbour
Herança! Um dos temas mais falados nos últimos tempos e, com ela, o planejamento sucessório. Hoje, apresentam-se nas redes sociais inúmeros “especialistas” em planejamento sucessório que sequer conseguiram realizar um único trabalho. No mundo virtual todos podem ser o que quiserem e é aí que mora o perigo porque o cliente, leigo nos assuntos jurídicos, acaba contratando uma “economia” e no final recebe um problema que, muitas vezes, só se revela anos depois.
As famosas Holdings Familiares são o instrumento jurídico de planejamento patrimonial e sucessório mais comentado ultimamente. Sim, elas são excelentes, mas é importante saber que em se tratando de economia tributária, como diz o ilustre professor Gladston Mamede, “pode ser que haja. Pode ser que nada mude. Pode ser que haja mesmo uma elevação dos desembolsos tributários, dependendo do que se faça.”[1] Mas o que se vê é a criação de uma enorme fantasia tributária onde mecanismos mirabolantes, para não dizer celulares, são inventados e vendidos como água, sem a devida responsabilidade e ética profissional, sem o alerta ao cliente sobre os riscos que tais mágicas podem trazer e, dentre estas, o uso indiscriminado do domicílio fiscal mais vantajoso.
Esta estratégia, atualmente utilizada nos planejamentos sucessórios, também teve seu tempo de glória nos casos próprios de abertura de inventário, objetivando minimizar a carga tributária do imposto incidente sobre a herança, e isso se dava em razão da antiga previsão constitucional relativa ao ITCMD – Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação.
A competência para instituição e cobrança desse imposto está disciplinada no Art. 155 da Constituição Federal, precisamente em seu inciso I, assim redigido:
“Art. 155 – Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;”
O § 1º também traz importantes informações sobre esse imposto, relacionadas ao Estado que tem direito de recebê-lo, resolvendo alguns conflitos de competência. Eis a antiga redação:
“§ 1º – O imposto previsto no inciso I
I – relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal
II – relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;”
Pelo texto constitucional acima, quando se trata de bens imóveis, não há discussão: independentemente de onde se processar o inventário ou tiver domicílio o falecido, o tributo será sempre devido para o Estado da situação do imóvel.
Mas o grande “pulo do gato” dizia respeito aos bens móveis, porque o imposto seria devido ao Estado onde se processasse o inventário ou arrolamento.
Mas o Direito não deve ser interpretado em tiras. Assim, para a compreensão desse dispositivo era imprescindível analisar o que a lei processual dispunha a esse respeito. E, num primeiro olhar, o Art. 48 do Código de Processo Civil disciplina a competência territorial, designando o foro do domicílio do autor da herança como o competente para processamento do inventário:
“Art. 48 – O foro de domicílio do autor da herança, no Brasil, é o competente para o inventário, a partilha, a arrecadação, o cumprimento de disposições de última vontade, a impugnação ou anulação de partilha extrajudicial e para todas as ações em que o espólio for réu, ainda que o óbito tenha ocorrido no estrangeiro.”
Há outras regras no Código de Processo Civil acerca da competência para o processamento do inventário, mas o exemplo trazido à baila retrata somente o procedimento na via judicial e sem exceções. A título ilustrativo, se o Sr. João falecesse no Rio de Janeiro, mas tivesse domicílio em São Paulo, o inventário deveria ser aberto em solo paulista, sendo devido o ITCMD para São Paulo.
Mas nos casos do inventário extrajudicial, quem definia a competência era a Resolução nº 35/2007 do Conselho Nacional de Justiça, que estabelecia o seguinte:
“Art. 1º – Para a lavratura dos atos notariais relacionados a inventário, partilha, separação consensual, divórcio consensual e extinção consensual de união estável por via administrativa, é livre a escolha do tabelião de notas, não se aplicando as regras de competência do Código de Processo Civil. (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26/06/2020)
E esta era uma excelente estratégia tributária para redução da carga do ITCMD quando a herança abrangia bens móveis, exclusivamente ou não, pois a família poderia adotar qualquer que fosse o tabelionato de notas dentro do território nacional, associando-se a regra do Art. 1º da Resolução nº 35/2007 ao inciso II do § 1º do Art. 155 da Constituição Federal. Isto fez com que, por muitos anos, herdeiros pagassem menos impostos de forma lícita, por meio do que se denomina elisão fiscal[2].
Voltando ao exemplo do Sr. João, que faleceu no Rio de Janeiro, mas tinha domicílio em São Paulo e uma herança composta por imóveis, aplicações financeiras e participações societárias, tudo no Estado de São Paulo. Seus herdeiros poderiam processar o inventário no cartório de notas do Amazonas, por exemplo, ocasião em que, relativamente aos imóveis situados em São Paulo, fariam o recolhimento do ITCMD a este Estado, mas no tocante aos demais bens (participações societárias e aplicações financeiras), sendo eles bens móveis, recolheriam o imposto ao Estado do Amazonas.
Notem que os exemplos acima estão no pretérito imperfeito, pois a PEC 132/2023, também chamada de reforma tributária, publicada em 20/12/2023, alterou o inciso II do § 1º do Art. 155 da Constituição Federal e, atualmente, mesmo nos casos de bens móveis, o inventário deverá ser processado no estado de domicílio do de cujus[3].
Para os inventários ficou mais complicado adotar um domicílio fiscal mais vantajoso, (complicado, mas não impossível). Entretanto esta estratégia continua a ser largamente utilizada nos planejamentos sucessórios realizados através das Holdings Familiares e, neste ponto, não houve qualquer alteração pela reforma tributária.
Nas Holdings Familiares o planejamento é feito por meio da doação das quotas sociais e, voltando ao Art. 155 da Constituição Federal, é possível constatar que há fixação da competência específica também para os casos de doação.
“§ 1º O imposto previsto no inciso I:
II – relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde era domiciliado o de cujus, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;”[4]
Neste caso, se o Sr. João resolvesse doar dinheiro para seus filhos, deveria recolher o ITCMD para o Estado onde ele tem domicílio e, sendo domiciliado no Estado de São Paulo, mas estando de passagem pelo Estado do Rio de Janeiro, no qual realiza a doação de R$ 500.000,00 para sua filha Ana, Sr. João deveria recolher R$ 20.000,00 de ITCMD ao Estado de São Paulo[5], local onde possui domicílio fiscal.
Mas e se o Sr. João tivesse mais de um domicílio e em Estados diferentes? Supondo que tivesse domicílio no Estado do Amazonas também, local onde ele possui uma empresa de importação e exportação. Poderia recolher o ITCMD para este Estado, pagando apenas R$ 10.000,00[6] de imposto em vez dos R$ 20.000,00 que seriam devidos a São Paulo?
Para responder a esta pergunta que parece bem simples, necessário analisar outras disposições legislativas (o Direito não se interpreta em tiras, lembra?), especialmente aquelas contidas no Código Tributário Nacional que, em seu Art. 127 disciplina sobre os domicílios fiscais. Mas antes, relevante conceituar domicílio e diferenciar os dois tipos mencionados neste artigo.
O saudoso professor Washington de Barros Monteiro traz à baila as seguintes ponderações sobre o tema:
“O direito é um complexo de relações que se estabelece entre os homens. É indispensável, porém, que estes estejam presentes em determinado lugar, de antemão conhecido, para que se exerçam normalmente as relações jurídicas. É uma necessidade social, uma necessidade de ordem geral, fixar a pessoa a determinado lugar. Se não houvesse essa fixação, se não existisse um ponto de referência onde a pessoa pudesse responder pelos seus deveres jurídicos, precário e instável se tornaria o direito. Esse ponto de referência, esse local prefixado pela lei, é o domicílio (do latim domus, casa ou morada), sede jurídica, sede legal da pessoa, onde ela se presume presente para efeitos de direito.”[7]
Considerando a existência de obrigações civis, tributárias, penais etc., a pessoa física ou jurídica pode ter mais de um domicílio. Neste caso, os dois tipos de domicílios mencionados neste artigo são:
a) o domicílio civil, definido pelo Código Civil como sendo o lugar em que a pessoa, física ou ficta, atua na vida jurídica; e
b)o domicílio fiscal ou tributário, definido pelo Direito Tributário como sendo o local onde o sujeito passivo é chamado para cumprir seus deveres jurídicos de ordem tributária. É onde o contribuinte deverá ser cobrado e onde deve sofrer fiscalização.
Retornando ao dispositivo tributário:
“Art. 127. Na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável, de domicílio tributário, na forma da legislação aplicável, considera-se como tal:
I – quanto às pessoas naturais, a sua residência habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o centro habitual de sua atividade;
(…)
§ 1º Quando não couber a aplicação das regras fixadas em qualquer dos incisos deste artigo, considerar-se-á como domicílio tributário do contribuinte ou responsável o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação.
§ 2º A autoridade administrativa pode recusar o domicílio eleito, quando impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização do tributo, aplicando-se então a regra do parágrafo anterior.”
Percebe-se que a regra geral para o domicílio tributário ou fiscal é a da eleição, já que o caput do art. 127, acima transcrito, inicia com “Na falta de eleição”.
Na ausência de escolha pelo contribuinte é que serão implementadas as regras contidas nos incisos e parágrafos do referido Art. 127 ou, obviamente, no caso de o domicílio eleito ser recusado pela autoridade fiscal, consoante § 2º do art. 127, CTN.
Vale ressaltar que a recusa não pode ser injustificada, pois o § 2º do art. 127, CTN expressamente dispõe que ela pode ocorrer quando a escolha impossibilite ou dificulte a arrecadação ou a fiscalização, não havendo discricionariedade por parte do Fisco nesta recusa.
Supondo que o Sr. João tenha uma casa em Ubatuba, litoral de São Paulo, mas resida na capital paulista. Ele poderá indicar ao município litorâneo o endereço de São Paulo para ser notificado ou demandado em relação ao IPTU da casa de veraneio. Caso não realize esta opção, o endereço desta é que será considerado pela prefeitura ubatubense como domicílio fiscal do Sr. João. Contudo, se ele tiver um imóvel em um município longínquo, sem agência dos correios, por exemplo, e o eleger pode ser que o Município de Ubatuba recuse a eleição em razão da dificuldade de comunicação.
A regra de eleição é um entendimento pacífico nos tribunais pátrios. A exemplo, citam-se as seguintes decisões:
“Agravo de Instrumento. ITCMD. Execução Fiscal. Doação. Exceção de não executividade. Domicílio Tributário. Sujeito ativo da obrigação. Exceção de não executividade oposta pelo executado para fins de reconhecer o Estado da Bahia como único competente para ajuizar execução fiscal, de modo que pleiteou a extinção do feito com fundamento na incompetência tributária do Fisco Paulista. Inadmissibilidade. Decisão agravada que rejeitou a exceção de não executividade, sob o fundamento de que o Estado de São Paulo é competente para a cobrança do ITCMD, pois, à época da doação, o domicílio civil do doador era em São Paulo – o domicílio tributário para fins de determinar a competência para a exação do ITCMD corresponde ao local da residência habitual do doador (domicílio civil) na data do fato gerador – inteligência do art. 155, I, § 1º, II, da CF cc. art. 3º, § 2º, da LE nº 10.705/2000 e art. 127, I, do CTN cc. arts. 70 e 71 do CC – sendo caso de multiplicidade de residências e exercício de profissão, o imposto será devido no endereço constante da Declaração de Imposto de Renda (item 2, do § 2º, do art. 4º da mesma legislação estadual) – tributação que, aparentemente, mostra-se devida ao Estado de São Paulo, visto que este ente da Federação foi referido pelo próprio doador como o de sua residência na declaração de duas doações realizadas ao ora executado, bem como foram localizados 02 veículos em nome do doador no mesmo endereço, indicado como domicílio pelo doador. Decisão mantida. Recurso desprovido.”[8]
“Apelação cível – Embargos à execução – IPVA – Domicílio Fiscal – Eleição pelo contribuinte – Faculdade relativa – Condição – Pluralidade de domicílios – Comprovação – Ausência – Apelação à qual se nega provimento.
1. O contribuinte pode eleger o domicílio no qual procederá ao recolhimento do IPVA, todavia, referida faculdade não é absoluta cabendo apenas na hipótese de pluralidade de domicílios.
2. Não havendo prova nos autos da pluralidade de domicílios, não há falar em eleição de domicílio fiscal pelo contribuinte do IPVA, que deverá recolher o tributo perante o Fisco de sua residência habitual.”[9]
“(…) ITCMD.Pretensão à suspensão da exigibilidade do crédito tributário e à anulação do lançamento. Divergência quanto ao domicílio tributário. A regra geral é a livre escolha do domicílio tributário pelo sujeito passivo das obrigações tributárias e as demais são supletivas e apenas se aplicam na falta de eleição do contribuinte. Inteligência do art. 127 do Código Tributário Nacional. Recurso não provido.” [10]
Assim, o domicílio tributário deve ser entendido como o local onde o contribuinte responde por suas obrigações fiscais. Entretanto, essa liberdade de escolha tem limites. Ela não pode estar desligada da realidade das coisas, limitando-se às possibilidades que essa realidade oferece. O que isto quer dizer? Simples, não é porque existe a possibilidade de escolher (quando o tributo permite) que é possível adotar qualquer local como domicílio fiscal. A escolha se limita aos locais onde o contribuinte, efetivamente, tenha algum tipo de vínculo.
Ao utilizar a estratégia de adoção de domicílio fiscal mais vantajoso nos planejamentos sucessórios realizados pelas Holdings Familiares, percebe-se uma movimentação temerária em algumas situações, onde se escolhem locais sem a existência de vínculos reais com a vida cotidiana do contribuinte. A escolha deve ocorrer dentre os domicílios do contribuinte e não entre os Estados da federação, de forma indiscriminada apenas e tão somente porque este ou aquele Estado possui alíquota mais baixa.
No exemplo do Sr. João, ele residia em São Paulo e possuía uma empresa sediada no estado do Amazonas. Neste caso, existe uma verdadeira ligação entre o Sr. João e este Estado, o que lhe permitiria escolher entre São Paulo ou Amazonas. Portanto, a adoção da estratégia de domicílio fiscal mais vantajoso é perfeitamente possível, como retratado nas decisões anteriormente destacadas, desde que realizada com a observância dos preceitos legais e vinculada à realidade das coisas.
[1] MAMEDE, GLADSTON. Holding familiar e suas vantagens: planejamento jurídico e econômico do patrimônio e da sucessão familiar. / Gladston Mamede, Eduarda Cotta Mamede; colaboração Roberta Cotta Mamede. 15ª ed. Barueri/SP: Atlas, 2023, pág. 170
[2] “ELISÃO FISCAL. A expressão elisão fiscal designa conduta lícita do contribuinte voltada à redução da carga tributária que eventualmente incida sobre sua atividade econômica. Destaque-se que a elisão fiscal constitui atividade lícita, deferida pela ordem jurídica ao contribuinte e voltada à proteção de seus interesses, diferenciando-se de eventual conduta que viole a ordem jurídica com o mesmo propósito, o que constitui sonegação fiscal.” DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. Atual. por Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. 28. ed. 2. tir. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
[3] I – relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde era domiciliado o de cujus, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;
[4] Texto com a redação atualizada de acordo com a PEC 132/2023.
[5] No Estado de São Paulo, na data em que este artigo foi escrito, a alíquota de ITCMD é única, de 4%.
[6] No Estado do Amazonas, na data em que este artigo foi escrito, a alíquota de ITCMD é única, de 2%.
[7] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. v. 1, Parte Geral. Ed. Saraiva: São Paulo, p. 156.
[8] TJSP. Agravo de Instrumento nº 2049717-78.2022.8.26.0000. 4ª Câm. Dir. Públ. Rel. Des. Paulo Barcellos Gatti. DJe 03/05/2022
[9] TJMG, Apelação Cível nº 1.0439.13.010295-7/001. Proc. 0102957-35.2013.8.13.0439, Rel. Des. Marcelo Rodrigues. DJe 15/02/2016
[10] TJSP, Apelação nº 0000366-31.2010.8.26.0344, DJe 07/05/2013. Apte o contribuinte.
Karina Jabbour é advogada especialista em Direito Tributário e Planejamento Patrimonial e Sucessório, palestrante e professora. É vice-presidente da Comissão Nacional de Planejamento Patrimonial e Sucessório da ABA.
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