Por David Roberto R. Soares da Silva
Manter investimento em empresas offshore exige que se pense, também, na questão sucessória. O falecimento do seu titular sem o devido planejamento poderá exigir a abertura de processo de inventário na jurisdição da empresa e não poderão ser incluídas em inventário no Brasil.
Em vários países que adotam o common law de origem inglesa, um instituto muito comum ao direito de propriedade é o chamado joint tenancy with rights of survivorship (ou JTWRS). É o caso, por exemplo, de BVI, Bahamas, Bermudas, Ilhas Cayman, jurisdições corriqueiras para sediar empresas offshore.
Em poucas palavras, e desconsiderando eventuais diferenças nas leis dessas localidades, pode-se dizer que o JTWRS é um mecanismo jurídico segundo o qual dois ou mais titulares de um bem são proprietários de 100% desse mesmo ativo, sem atribuir um percentual específico para cada um deles. Em outras palavras, é uma espécie de condomínio em que cada condômino não possui uma fração ideal do todo, mas o todo em si, ou seja, todos os titulares detêm 100% da propriedade indivisa do bem.
A expressão joint tenancy reflete essa copropriedade entre todos os titulares (tenants), ao passo que a expressão with rights of survivorship (direitos de sobrevivência) significa que, no falecimento de um tenant, a propriedade se consolida nos demais tenants sobreviventes, desconsiderando os seus sucessores. Ou seja, a parcela do titular falecido não é transmitida aos seus sucessores e tampouco se submete a um processo de inventário, seja no país da offshore, seja no Brasil.
Imagine uma empresa offshore detida por dois irmãos em JTWRS, sendo um deles casado e com filhos, e o outro, solteiro. Para fins de JTWRS, os dois são titulares de 100% das ações da empresa. Com a morte do irmão casado e com filhos, as ações da offshore se concentrarão nas mãos do irmão solteiro, e não serão transmitidas para esposa e filhos do falecido. Ao consolidar a propriedade no irmão sobrevivente, caberá a ele, então, determinar como será regida a sucessão do ativo quando de sua morte. Ele poderá, por exemplo, admitir novos tentants, colocar as ações em um trust, elaborar um testamento no país de constituição da empresa etc. E tudo isso sem que qualquer ação da offshore seja transmitida aos sucessores do irmão morte, como determinaria a lei brasileira se a empresa estivesse sediada no Brasil, podendo vir a ser um problema para a viúva e filhos.
Na prátoca, o que o JTWRS faz é retirar o ativo em joint tenancy do patrimônio do falecido no exato momento de sua morte sem a sua transmissão aos sucessores. De fato, não há que se falar em transmissão do ativo propriamente dita, pois o que ocorre com o ativo em JTWRS é a consolidação de 100% da sua titularidade nos tenants sobreviventes indicados nos documentos do ativo (share register e share certificate, no caso de empresa offshore).
No contexto brasileiro, o JTWRS traz questões e problemas que ainda não foram tratados pelos nossos tribunais e tampouco pela administração tributária. Na questão sucessória, o JTWRS traz as vantagens de evitar inventário no exterior e minimizar custos decorrentes da morte de um tenant com relação ao ativo em joint tenancy. Por outro lado, o JTWRS pode prejudicar sucessores naturais sob a lei brasileira, tais como meeiro, companheiro, filhos etc. se o ativo em JTWRS no exterior representar fração maior do que a parcela disponível do falecido. A situação pode se complicar ainda mais, pois a Justiça brasileira não tem jurisdição para tratar de partilha de ativos no exterior e a jurisdição no exterior pode não admitir questionamentos por parte de herdeiros brasileiros prejudicados se o JTWRS é aceito por aquela jurisdição na qual eatá registrado o ativo.
Quando a parcela no exterior em JTWRS for igual ou menor do que a parcela disponível do falecido no Brasil, a questão pode ser mais facilmente resolvida tratando a parcela em JTWRS, para fins sucessórios brasileiros, como legado aos demais tenants, ajustando-se o remanescente do patrimônio aos herdeiros. De qualquer forma, a instituição de JTWRS em ativos no exterior deve ser precedida de avaliação cuidadosa para não prejudicar herdeiros.
A questão tributária é mais complexa, pois se trata de instituto não previsto no direito brasileiro, o que, sem dúvida, traz insegurança jurídica.
Por exemplo, é de se indagar qual o tratamento a ser dado à “parcela” do patrimônio do tenant morte que se consolida nos demais tenants. Será ela considerada uma herança ou doação aos demais acionistas ou, por outro lado, não afeta tributariamente os tenants sobreviventes enquanto não houver a liquidação de suas ações (ex., por extinção da empresa)? Será que esse acréscimo intrínseco de patrimônio estaria sujeito ao ITCMD (imposto sobre heranças e doações) ou imposto de renda?
Creio que o caminho mais correto seja os tenants sobreviventes continuarem a declarar as ações em JTWRS pelo seu custo de aquisição original sem acrescentar o valor atribuível ao tenant falecido. Isso porque no JTWRS não há percentual atribuído a cada tenant. O que há, sim, é uma copropriedade em que todos os tenants são titulares de 100% do ativo, ainda que, para fins brasileiros, a declaração do ativo aos órgãos competentes (Receita Federal e Banco Central) deva ser feita de acordo com sua contribuição no custo de aquisição do ativo.
Por essa mesma razão, a consolidação do ativo nos tenants sobreviventes não significa que houve uma transmissão causa mortis de bens. A transmissão exige que a titularidade de um bem saia do patrimônio de alguém para entrar no patrimônio de outrem. No caso do JTWRS, 100% do patrimônio já era de todos os tenants, e o que muda com a morte de um deles, para fins brasileiros, é o valor intrínseco do ativo atribuível a cada tenant, mas sem que isso signifique transferência de titularidade do ativo em si.
Assim, é possível considerar que o valor original declarado por cada tenant no seu IR não deve ser alterado, tampouco ser reconhecido como rendimento isento (de IR) a título de herança, doação ou meação. Como consequência, também não há que se falar em incidência do ITCMD, pois não há transmissão de bens.
No entanto, se no futuro um tenant alienar suas ações a um terceiro, o ganho de capital será a diferença positiva entre o valor recebido e o custo de aquisição declarado para fins de IR, sem considerar o acréscimo havido em decorrência da morte de um tenant. Ou seja, aquele valor que se “acresceu” ao patrimônio dos tenants sobreviventes possui custo zero e deverá ser tributado em algum momento pelo imposto de renda.
Outra questão diz respeito à inclusão de novos tenants. O novo tenante sofre um aumento patrimonial em razão de sua nova condição de acionista da offshore. Ele passa a ser algo (acionista) que não era antes e a ter um patrimônio que não tinha antes. Dessa forma, há consequências na esfera tributária para esse novo tenant.
Não há previsão na legislação brasileira para esse tipo de situação e tampouco posicionamento de nossos tribunais ou autoridades tributárias. Por essa razão, recomenda-se prudência e cautela nesse tipo de situação, não podendo ser dispensada a devida assessoria especializada a fim de evitar surpresas.
O uso do JTWRS em empresas offshore pode ser uma ferramenta interessante para situações familiares menos complexas, como entre casais ou com eles e seus filhos. O JTWRS evita o inventário no exterior até o último tenant mas, por outro lado, exige cuidado para não prejudicar sucessores. Para situações familiares mais complexas, o JTWRS tende a não ser recomendável, devendo ser consultado um especialista na área.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista, também especializado em planejamento patrimonial e sucessório. É sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), Renda Variável: Investimentos, Tributação e Como Declarar (2021), e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.
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