Por David Roberto R. Soares da Silva
Como se não bastassem as confusões e entendimentos equivocados acerca da imunidade tributária do ITBI na conferência de imóveis para holdings patrimoniais (não imobiliárias), uma nova guerra aparece no horizonte para as empresas sediadas no município de São Paulo.
Em um breve retrospecto, historicamente, era consenso de que a conferência de imóveis ao capital social de uma empresa sem atividade imobiliária preponderante não se sujeitava ao ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis), dada a imunidade tributária prevista no Art. 156 da Constituição Federal. A incidência do ITBI somente ocorria quando a empresa receptora dos imóveis tivesse atividade imobiliária preponderante, assim entendida como sendo mais de 50% da receita operacional decorrente da compra, venda e locação de imóveis.
Esse entendimento era pacífico até o julgamento do Recurso Extraordinário nº 796376 pelo Supremo Tribunal Federal. O caso dizia respeito a um questionamento pontual da incidência do ITBI, em que parte do valor dos imóveis conferidos ao capital social de uma empresa fora alocada à conta de reserva de capital e não ao capital social. Ou seja, algo muito específico e raro de se ver na grande maioria dos casos. Fiz uma análise dessa decisão neste artigo (acesse)
Uma interpretação errônea dessa decisão levou centenas de municípios a passarem a cobrar ITBI – ao menos parcialmente – na conferência de imóveis de empresas patrimoniais, sem qualquer receita imobiliária.
Pois bem, na seara dessa balbúrdia tributária, o município de São Paulo vem notificando e autuando holdings patrimoniais pelo ITBI não pago na conferência de imóveis, com base de uma nova tese estapafúrdia, que veremos a seguir.
Antes, no entanto, vale lembrar que holdings patrimoniais são utilizadas para deter patrimônio não operacional, como imóveis para uso próprio, veículos, embarcações e participações em outras empresas. Por não terem operações, é comum que não disponham de estrutura física própria, ou até mesmo empregados ou contas de consumo em seu nome.
Em algumas notificações e autuações, o fisco paulistano tem exigido o ITBI sobre a totalidade dos imóveis conferidos ao capital social de holdings patrimoniais sob a alegação de desvio de finalidade, simulação e confusão patrimonial.
Em alguns casos, o fisco usa a ausência de qualquer receita para alegar que a empresa é praticamente inativa e sem quaisquer alterações em seu patrimônio. Diz, ainda, que o legislador constituinte, ao imunizar a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica em integralização de capital teria pretendido exclusivamente incentivar o crescimento da empresa, evitando que o recolhimento de valores a título de ITBI se transformasse num estímulo contrário à formulação de negócios.
Sendo este o suposto desejo constitucional, segundo a fiscalização paulistana, qualquer desvio de finalidade da norma constitucional, direcionada a beneficiar os sócios da empresa, deve ser coibido.
Em um caso recente, depois de analisar a contabilidade e os documentos da holding, o fisco alegou que a própria criação da empresa teve como único propósito transmitir imóveis sem pagamento de ITBI dos genitores aos filhos, dado que as quotas da empresa foram posteriormente doadas aos descendentes. Assim, teria havido desvio de finalidade da imunidade de ITBI, abuso de forma, ausência de propósito negocial, sendo, portanto, devido o imposto com juros e multas.
Indo além, o fisco não se contentou com as poucas despesas incorridas pela empresa desde a sua constituição, alegando que a contabilidade não refletia, com fidedignidade, as alterações ocorridas no patrimônio da pessoa jurídica, no período analisado. As despesas registradas seriam incompatíveis com o seu patrimônio imobiliário, dado que não havia contas de consumo (água, energia elétrica) em nome da empresa, nem contabilização de IPTU, despesas condominiais etc.
O resultado dessa fiscalização foi a lavratura de autos de infração com a exigência do imposto municipal, com base no valor venal dos imóveis conferidos ao capital da holding.
Se a “moda pega”, podemos estar diante do fim das holdings como ferramenta de organização e planejamento patrimonial e sucessório. Um total absurdo.
Ao que parece, essa é mais uma das teses criadas pela fiscalização para impedir que os contribuintes planejem a sua vida e organizem o seu patrimônio. As holdings são empresas amplamente utilizadas em sede de planejamento patrimonial e sucessório, especialmente para evitar a copropriedade em bens imóveis, brigas e conflitos entre herdeiros, criar governança familiar, entre outras razões. Alegar que a ausência de receitas ou de despesas configura simulação ou fraude à lei, ou, ainda, ausência de propósito negocial é extrapolar os limites do poder de tributar do estado e ingerência descabida na vida dos particulares.
Essa tese ‘maluca’ e despropositada lembra outra, ocorrida na primeira década dos anos 1990. Naquele período ainda existia tributação de lucros distribuídos a sócios e acionistas. Assim, empresas holdings auferiam receita tributável com lucros recebidos de suas controladas, e pagavam IRPJ e CSL sobre o lucro líquido apurado depois de deduzidas suas despesas.
Em um dado momento, um grupo de fiscais da Receita Federal criou a tese de que holdings, por serem empresas não operacionais, não possuíam despesas operacionais que pudessem ser deduzidas do lucro tributável e que, portanto, todas as despesas da holding seriam indedutíveis. A tese durou pouco tempo e logo foi derrubada pelo Conselho de Contribuintes (atual CARF).
O que se quer mostrar com essa pequena digressão são os absurdos a que podem chegar a fiscalização tributária no Brasil.
A nova tese do fisco paulistano não pode e não deve prevalecer. Uma holding patrimonial possui, sim, propósito de organizar o patrimônio de seu titular e de permitir que esse patrimônio seja administrado de forma mais racional e, em dado momento, seja eventualmente transmitido aos sucessores. A não incidência do ITBI é fato marginal. O que se vislumbra com a holding é a organização e transmissão do patrimônio em um planejamento patrimonial e sucessório lícito.
No caso analisado, ainda há que se considerar um equívoco na alegação fiscal de que o contribuinte pretendera transferir imóveis aos sucessores sem pagar o ITBI. No caso concreto, houve doação das quotas aos filhos, ou seja, uma transmissão gratuita de bem imóvel. Ora, o imposto incidente nas doações, incluindo de bens imóveis, é o ITCMD, de competência estadual. Assim, mesmo que o contribuinte tivesse como único propósito a doação dos imóveis, ainda assim não seria devido o ITBI, imposto municipal, mas sim o ITCMD.
Enfim, esse desabafo serve como alerta àqueles que utilizaram a estrutura de holding no município de São Paulo com a conferência de imóveis sem o pagamento do ITBI. O fisco paulistano está à espreita e surpresas desagradáveis podem surgir em breve.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor do Construindo o Planejamento Patrimonial e Sucessório: Análise de casos reais, do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2020), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos publicados pela Editora B18.
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