Por David Roberto R. Soares da Silva
Um tema recorrente na área de planejamento patrimonial é a questão que envolve a comunicabilidade bens, ou seja, quais bens devem ser partilhados (bens comuns) e quais não (bens particulares) por ocasião de divórcio ou dissolução da união estável. O assunto também é relevante em caso de falecimento de uma das partes para determinar o montante que será considerado meação do cônjuge o companheiro.
A resposta a esse tema é dada pelo Código Civil, sendo ele claro quando se trata dos regimes da comunhão universal de bens e o da separação total da bens. A situação é mais complicada para o regime legal atual – o da comunhão parcial de bens (CPB)-, também aplicável à união estável não formalizada. Isso porque o regime da CPB exige identificar a origem aquisitiva de cada um dos bens do casal.
Os Arts. 1658 e seguintes do Código Civil dispõe sobre essas regras, a saber:
Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.
Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:
I – os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar;
II – os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares;
III – as obrigações anteriores ao casamento;
IV – as obrigações provenientes de atos ilícitos, salvo reversão em proveito do casal;
V – os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;
VI – os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;
VII – as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes.
Art. 1.660. Entram na comunhão:
I – os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges;
II – os bens adquiridos por fato eventual, com ou sem o concurso de trabalho ou despesa anterior;
III – os bens adquiridos por doação, herança ou legado, em favor de ambos os cônjuges;
IV – as benfeitorias em bens particulares de cada cônjuge;
V – os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão.
Uma regra que suscita controvérsia é aquela estabelecida no inciso I do Art. 1.660 que diz que entram na comunhão “os bens adquiridos na constância do casamento (ou união estável) a título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges.” Esse dispositivo tem utilizado usado, por exemplo, para incluir na partilha os saldos de planos de previdência privada de um cônjuge que foram aportados durante o relacionamento. Não são raras as disputas para excluir parcelas de planos de previdência pagas durante o casamento da partilha de bens, mas o resultado tem sido por considerar esses valores como bens comuns, tais como outros investimentos financeiros.
De maneira análoga, poder-se-ia questionar se são comuns – e partilháveis – os valores de financiamento por bem adquirido por uma das partes antes do casamento, mas liquidados durante a relação. Veja, por oportuno, que as reformas e benfeitorias feitas no imóvel particular durante o casamento se tornam bens comuns, nos termos do inciso IV do Art. 1.660, acima transcrito.
Pois bem, um caso como esse foi analisado recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ.
Nele, o ex-marido pleiteava a partilha relativa a valores pagos pela ex-esposa por financiamento de um imóvel que ela adquirira logo antes do casamento. A esposa adquirira um imóvel financiado menos de um mês antes do casamento, dando como sinal um valor em dinheiro e o saldo de seu FGTS. O saldo do financiamento seria pago em 360 prestações mensais.
O casal se separou dois anos e meio depois e o ex-marido pretendeu verem partilhadas as parcelas do sinal e das mensalidades até o momento do divórcio. Para tanto, alegou que vivera em união estável com a esposa até o casamento – aplicando-se, portanto, o regime da comunhão parcial de bens, sendo o casamento também celebrado sob o mesmo regime.
Analisando o caso, o STJ rechaçou as alegações da existência da união estável prévia ao casamento, reconhecendo que a relação existente era apenas de namoro qualificado, sem repercussões patrimoniais. Portanto, o imóvel originalmente adquirido não seria bem comum, mas sim bem particular da esposa.
Com relação aos valores do financiamento pagos pela esposa durante o casamento, o STJ reconheceu que o marido não contribuiu com os pagamentos mensais, sendo eles de esforço exclusivo da mulher. Por essa razão, admitir a partilha desses valores seria permitir o enriquecimento sem causa do cônjuge varão. Nesse sentido, o Tribunal invocou o Art. 1.661 do Código Civil que diz:
Art. 1.661. São incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento.
Para o STJ, aquisição ocorreu antes do casamento, arcando a esposa, sozinha, com as parcelas do financiamento. Por essa razão, a condição de bem particular – não partilhável – se estenderia às parcelas do financiamento por ela pagas durante o casamento.
Vale transcrever trecho da decisão:
“Salienta-se que o imóvel foi adquirido anteriormente à configuração da affectio maritalis, que retrata a manifesta intenção das partes constituírem uma família de fato. Na hipótese, o bem objeto da pleiteada partilha foi adquirido durante o namoro com recursos exclusivos da ora recorrente.
Desse modo, o recorrido não faz jus a nenhum benefício patrimonial decorrente do negócio jurídico, sob pena de a circunstância configurar um manifesto enriquecimento sem causa.
A recorrente arcou de forma autônoma e independente com os valores para a aquisição do bem, motivo pelo qual o pagamento de financiamento remanescente, assumido pela compradora, não repercute em posterior partilha por ocasião do divórcio, porquanto montante estranho à comunhão de bens.” (STJ, Recurso Especial nº 1.841.128, julgamento em 23 de novembro de 2021.)
Com esse entendimento, a mulher conseguiu evitar que o “ex” fizesse jus à metade do valor das parcelas que ela pagou sozinha durante o casamento.
Situações como essa não são raras e sempre são causa de estresse numa situação por si já delicada. Veja que, no caso em questão, o casal havia se casado em abril de 2011, se separado em junho de 2014, mas a disputa só foi resolvida em novembro de 2021.
Foram mais de sete anos de disputa judicial que, certamente, gerou um impacto maior do que a questão financeira. No caso, mesmo adotando o regime da comunhão parcial de bens, o casal poderia ter estabelecido regras claras sobre o assunto mesmo antes do casamento. Embora o regime da comunhão parcial de bens não exija pacto nupcial, o Código Civil não proíbe que o pacto seja feito, mesmo quando seja esse o regime adotado pelo casal.
Assim, o casal, previamente à celebração do casamento, poderia ter elaborado um pacto antenupcial simples apenas para dispor que era intenção das partes que o imóvel e as parcelas de seu financiamento – inclusive eventual inadimplência – seriam de responsabilidade exclusiva da mulher. Nesse caso, o marido não teria direito à partilha em caso de divórcio, mas, por outro lado, não poderia sofrer ação de cobrança do credor caso a esposa falhasse no pagamento das parcelas.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista, também especializado em planejamento patrimonial e sucessório. É sócio do BLS Advogados, autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), Renda Variável: Investimentos, Tributação e Como Declarar (2021), e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.
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