Em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça reafirmou sua orientação, no sentido de considerar impenhorável único bem de família alienado a descendente, ainda que durante o curso de execução fiscal.
Contextualizando: Epaminondas, casado, pai de Jardel, outrora foi um próspero comerciante em sua região. Conseguiu à duras penas construir um patrimônio, proporcionando conforto e segurança à família. Mas a vida tem seus percalços, e Epaminondas, em dado momento, se viu assolado em dívidas. Bens sendo vendidos para pagar credores, redução de gastos, cancelamento de assinatura da NETFLIX…e ao final, restou somente seu único imóvel, onde residia com a amada esposa, que o apoiou em todo esse difícil trajeto.
Mesmo após variadas tentativas de saldar todos os débitos, ainda restou uma execução fiscal, relativa a débitos previdenciários de sua antiga empresa. Dívida de elevado valor, com correção monetária pela taxa SELIC, não havia mais nenhum bem disponível, muito menos saldo em conta para quitá-la, o que levaria, infelizmente, à insolvência do crédito.
Já com idade avançada, e detentor de um único bem – sua casa – Epaminondas doou o imóvel ao seu filho Jardel, livre e desembaraçado de qualquer ônus, mesmo já tendo sido citado da execução fiscal. Ou seja, Epaminondas sabia que devia, sabia do processo, e mesmo assim, transferiu o único bem que possuía ao filho.
A Fazenda Pública – credora – por sua vez, tentou penhorar o imóvel, ato negado pelo Cartório de Registro de Imóveis, pois o imóvel não mais pertencia a Epaminondas, e sim a Jardel, seu filho, que inclusive apresentou petição no curso da execução, informando que dito imóvel era impenhorável, por se tratar de bem de família, pois além de não possuir outros imóveis, esta característica já vinha desde o ato de doação feita pelo seu pai – lembre-se, o imóvel de Epaminondas era único, que servia como sua residência.
Decorrida a regular marcha processual, o pedido de Jardel foi julgado procedente, pois no entender do juiz de primeira instância, caso o bem de família tenha sido doado ao descendente, mesmo que haja ação em curso, não se trataria de fraude contra credores, pois ainda que a transferência seja cancelada, voltaria o imóvel ao doador com a mesma característica – bem de família – a impenhorabilidade.
A sentença foi reformada pelo Tribunal regional, entendendo que era questão de fraude processual, e ao final, a demanda foi parar no Superior Tribunal de Justiça, que reafirmou seu posicionamento, mantendo a decisão de primeira instância, no seguinte sentido:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. BEM DE FAMÍLIA. ALIENAÇÃO APÓS CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. IMPENHORABILIDADE. MANUTENÇÃO. FRAUDE. INEXISTÊNCIA.
1. Ambas as Turmas da Primeira Seção desta Corte Superior adotam a orientação segundo a qual a alienação de imóvel que sirva de residência do executado e de sua família após a constituição do crédito tributário não afasta a cláusula de impenhorabilidade do bem, razão pela qual resta descaracterizada a fraude à execução fiscal. Precedentes.
2. Hipótese em que o tribunal regional, ao consignar que estaria configurada a fraude à execução com a alienação do bem imóvel após a constituição do crédito tributário, ante a desconstituição da proteção legal dada ao bem de família, posiciona-se de forma contrária a esse entendimento. 3. Agravo interno desprovido.
Agravo em Recurso Especial nº 2174427
Toda a contextualização foi narrada de modo fictício, mas os fatos são totalmente verossímeis. O que o STJ reafirmou, e já tinha sido declarado pelo juiz de primeira instância é que, quando há doação de bem de família, ainda que esteja em curso execução fiscal – inclusive com a citação do devedor – não se caracteriza fraude à execução ou credores, pois o ato de liberalidade não retira a característica de impenhorabilidade do imóvel.
E caso a transferência seja revertida ao doador, por óbvio, permanece o imóvel impenhorável, pois continua sendo bem de família, elevado à proteção legal e imune aos efeitos de cobrança de dívidas adquiridas pelo proprietário.
Para o bem e para mal, a lei preserva a moradia, o bem-estar social dado à morada, elevado a um dos direitos fundamentais inerentes à dignidade humana, em detrimento da dívida. Há somente algumas exceções elencadas na lei capazes de se sobressair à regra, que são: i) dívidas de IPTU relativas ao próprio imóvel; ii) credor de pensão alimentícia; iii) hipoteca sobre o imóvel adquirido; iv) adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; e v) obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Agora uma conjectura: e se o imóvel de Epaminondas fosse localizado em bairro nobre, avaliado na faixa das dezenas de milhões de Reais, a regra continuaria em vigor? Poderia ele opor a cláusula de impenhorabilidade de bem de família ao credor fazendário?
Neste caso, não, ao menos em parte. A opulência patrimonial, ainda que vertida em somente um imóvel próprio do devedor, cede frente a outros princípios do direito, como a ponderação, isonomia e a satisfação da dívida do credor. Poderia muito bem o devedor alienar o imóvel, saldar sua dívida, e continuar vivendo em padrões mais modestos, sem comprometer sua existência e dignidade.
Os Tribunais pátrios já se viram em casos como estes, tendo como exemplo o posicionamento do Tribunal de Justiça de São Paulo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL DE VALOR VULTOSO. PENHORA. POSSIBILIDADE EXCEPCIONAL. RESERVA DE PARTE DO VALOR AO DEVEDOR. NECESSIDADE. VALOR QUE DEVE SER GRAVADO COM CLÁUSULA DE IMPENHORABILIDADE. PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO MÍNIMO E DA DIGNIDADE HUMANA DO DEVEDOR.
1.- A interpretação sistemática e teológica do art. 1º da Lei nº. 8.009/90, mediante ponderação dos princípios constitucionais que informam a impenhorabilidade do bem de família e garantem o direito de ação com duração razoável do processo, à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, permite a penhora de imóvel de valor vultoso (R$ 24.000.000,00), ainda que destinado à moradia do devedor.
2.- A penhora de bem de família de valor vultoso, no entanto, exige que se reserve ao devedor valor condizente com sua situação social, visando a possibilitar-lhe a aquisição de outro imóvel para morar com dignidade.
3.- A reserva de parte do produto da alienação do imóvel penhorado deve ser gravada com cláusula de impenhorabilidade, visando a dar cumprimento ao disposto no art. 1º. da Lei nº. 8.009/90, conforme sua interpretação conforme à Constituição Federal.
4.- Decisão reformada. Agravo parcialmente provido.
Agravo de Instrumento nº 2075933-13.2021.8.26.0000 – TJSP
No entanto, o STJ discorda deste posicionamento, e adota entendimento contrário:
(…)
2. O simples fato de o imóvel ser de luxo ou de elevado valor, por si só, não afasta a proteção prevista na Lei n. 8.009/1990. Precedentes.
(…)
Agravo Interno no agravo em recurso especial nº 1.199.556/PR – Superior Tribunal de Justiça
Ainda que haja decisão pela Corte responsável pela uniformização da legislação federal, o caso não foi encerrado em sede de recurso repetitivo, apesar de orientar o judiciário em razão de importante precedente. Quer-se dizer com isso que a situação pode vir a se alterar…
Por fim, uma última conjectura: e se o imóvel dado por Epaminondas fosse rural, uma grande propriedade em que parte estivesse ociosa para o cultivo, permaneceria a regra? Neste caso, a resposta negativa se impõe, e sem divergência entre as cortes locais e o STJ. No caso, é possível o desmembramento da propriedade, deixando incólume a parte residencial, e restando penhorável o restante, dividindo-se a propriedade com vistas à satisfação do crédito do credor.
Nessa linha, o seguinte entendimento:
(…)
2. Esta corte superior tem entendimento firmado de ser adequada a penhora de parte do bem imóvel não utilizada para fins residenciais, ainda que, no registro imobiliário, haja somente uma matrícula, quando o desmembramento não prejudicar a garantia de moradia da família.
(…)
Agravo Interno no Recurso Especial nº 1456845/PR
Em todo caso, e guardadas as vozes contrárias, não há direitos absolutos existentes na legislação pátria. O mau uso do instituto do bem de família é facilmente revertido pelo judiciário, e se escudar em um instituto tão nobre para o direto pode sair caro ao final. Tenha em mente que por mais que o consciente coletivo prolifere a ideia de que o bem de família é “intocável”, vimos que a realidade é bem distante desta afirmação, e pode, sim, ser revertido em renda em prol do credor.
Artur Francisco da Silva é advogado do departamento de wealth planning e tax do BLS Advogados, em São Paulo.
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