Por Roberto Prado de Vasconcellos
Na sessão de julgamento do Recurso Especial nº 1.759.081-SP em 15 de dezembro de 2020, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça alterou a jurisprudência pró-contribuinte que até então prevalecia nos tribunais superiores sobre a remessa de pagamentos relativos à remuneração de serviços técnicos, com ou sem transferência de tecnologia, a países que tenham assinado tratado contra dupla tributação com o Brasil.
No contexto destes tratados, os contribuintes costumavam contar com o STJ para classificar a remuneração de serviços técnicos como lucro das empresas (art. 7 do modelo de tratados contra dupla tributação da OCDE) e, assim, assegurar que tais lucros fossem tributados somente no país de destino, ao invés de sofrer retenção de 15% no país fonte (Brasil).
O recurso especial decidido pela 2ª Turma do STJ julgou a tributação da remessa de pagamento de serviços de engenharia e assistência administrativa à empresa localizada na Espanha. Neste caso, a decisão recorrida havia sido a favor do contribuinte, reconhecendo a aplicabilidade do artigo sobre lucro das empresas e, assim, afastando a retenção na fonte no Brasil sobre o pagamento efetuado. Entretanto, o acórdão do STJ determinou o retorno dos autos à Corte de Origem para que questões de fatos e direito relevantes para o deslinde da causa fossem primeiramente lá examinadas. Mais precisamente, o acórdão determinou que a Corte de Origem deve analisar a natureza do contrato que enseja a remessa (por exemplo, se o protocolo do tratado abrange o conceito de royalties conforme os fatos ou se há prestações de serviços por profissionais independentes), bem como verificar a ausência de hibridismo (verificação se o enquadramento do rendimento é o mesmo no país fonte e no país de residência).
Cabe notar que a decisão da 2ª Turma do STJ foi unânime, tendo votado com o relator, Min. Campbell Marques, os Ministros Herman Benjamin, Og Fernandes, Francisco Falcão e Assusete Magalhães. O acórdão comentado chegou a elogiar o Ato Declaratório Interpretativo RFB nº 5/2014 que, na prática, retira a aplicabilidade do artigo que trata dos lucros das empresas de todos os tratados contra dupla tributação assinados pelo Brasil, exceto apenas dos que foram assinados com a Áustria, França, Finlândia, Japão e Suécia. A decisão afirmou que o referido ADI RFB nº5/2014 bem delineou que a aplicação do artigo 7º “lucro das empresas”, do modelo da OCDE, não pode ser automática, pois depende preliminarmente do exame do enquadramento da remessa nos artigos sobre royalties e serviços profissionais independentes. Desta forma, a 2ª Turma do STJ demonstrou sua concordância incondicional com a interpretação proposta pela Receita Federal, esvaziando a aplicabilidade do artigo que trata dos lucros das empresas na grande maioria dos tratados tributários assinados pelo Brasil.
Não houve, até o momento, manifestação da 1ª Turma do STJ a respeito do ADI RFB nº5/2014. Entretanto, tudo indica que o novo rumo da jurisprudência, no sentido traçado pela 2ª Turma, deverá se consolidar em um futuro próximo. Note-se que, mesmo ainda sendo possível afirmar que o artigo de lucro das empresas é aplicável para serviços que não sejam técnicos ou de assistência técnica como, por exemplo, representação comercial, há que se reconhecer que tais serviços constituem exceções bastante restritas.
Em todo caso, a mudança de orientação não foi inesperada. Há anos o fisco brasileiro vem procurando neutralizar a aplicação do artigo que trata dos lucros das empresas por permitir remessas internacionais sem retenção na fonte. A recente decisão do STJ reforçou o que o próprio STJ havia sido decidido no caso Alcatel (REsp. n.1.618.897-RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 19.05.2020), isto é, a impossibilidade de enquadramento automático das remessas sobre serviços técnicos no artigo que trata de “Rendimentos Não Expressamente Mencionados” (artigo 22 do modelo da OCDE), conforme previa o antigo Ato Declaratório Normativo COSIT nº1, de 05 de janeiro de 2000. Cumpre também lembrar que, no referido caso Alcatel, o tratado envolvido era com a França, que é um dos cinco tratados cujo protocolo não prevê a equiparação da remuneração de serviços técnicos e de assistência técnica a royalties, o que permitiria aplicar o artigo sobre lucro das empresas, e que, aliás, também está conforme o previsto no ADI RFB nº5/2014.
Curiosamente, embora o STJ tenha mencionado a ação nº2 da iniciativa da OCDE conhecida como Base Erosion and Profit Shifting (BEPS), ao tratar do combate ao hibridismo e a dupla não tributação, por outro lado evitou enfrentar a controvérsia a respeito da exclusão da classificação de remessas como royalties quando não há transferência de tecnologia. O elogio incluído no Resp nº 1.759.081 ao ADI RFB nº5/2014 não incluiu qualquer ressalva.
Roberto Prado de Vasconcellos é especialista em tributação americana, advogado tributarista sênior, e coautor do livro Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos, publicado pela Editora B18.