Em recente decisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reconheceu a uma empresa recém-criada o direito ao não recolhimento de ITBI sobre integralização de capital social por meio de imóvel, feita por um de seus sócios. Trata-se de uma decisão importante, pois adota uma abordagem inédita sobre esse controverso tema do ITBI na conferência de imóveis ao capital das empresas.
Em linhas gerais, o TJSP entendeu a empresa, constituída recentemente, não teria como comprovar se sua atividade preponderante seria voltada à compra e venda de imóveis e que, por isso, não seria possível exigir o ITBI. Em outras palavras, o tribunal reconheceu que não era possível comprovar a atividade preponderante da empresa, devido ao seu pouco tempo de constituição. Conforme se verá, ainda não é a tese principal a ser avaliada pelos magistrados, mas é um indicativo que o atual posicionamento das cortes estaduais pode ser revisto.
Para compreender a tese acolhida pelo TJSP vale fazer alguns esclarecimentos iniciais. O ITBI é o imposto sobre a transmissão de bens imóveis, majoritariamente recolhido em transações imobiliárias. Permuta, compra e venda, dação em pagamento…pensou em transferência de imóvel de maneira onerosa, lá estará o ITBI.
O seu regramento maior vem descrito na Constituição Federal (Art. 156, II), assim como a situação descrita pelo constituinte na qual estará imune o contribuinte que realizar o fato gerador do ITBI. Dita imunidade se observa na ocorrência de integralização de imóvel ao capital social da empresa por meio de imóvel. Portanto, segundo o Texto Constitucional, temos duas hipóteses de imunidade do imposto, sendo elas:
Situação A – Art. 156, § 2º, I, primeira parte | Situação B – Art. 156, § 2º, I, segunda parte |
não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital | nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil |
Repare que são duas situações totalmente distintas, separadas pelo advérbio “nem”. Na frase “Não gosto de refrigerante, nem de café, mas pela manhã, bem quente, sem adoçante, acompanhado de torradas, abro exceção”, certamente não estou me referindo a tomar refrigerante quente sem adoçante pela manhã, e sim ao café.
Assim deve ser lida a exceção/imunidade tratada pela Constituição Federal, no caso do ITBI: não incide [ITBI] sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção da pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil. Ou seja, o elemento atividade preponderante reserva-se aos casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção da pessoa jurídica, enquanto que a outra regra descrita na situação A seria incondicionada.
Portanto, bastaria ao contribuinte integralizar o bem imóvel ao capital social da empresa para que não houvesse a incidência do ITBI, e nos casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção da pessoa jurídica, desde que sua atividade comercial preponderante não fosse a compra e venda, locação ou arrendamento mercantil de bens imóveis. Esse é melhor entendimento sobre a matéria, sendo literalmente a aplicação dos próprios dizeres constitucionais.
Mas vamos complicar…
O Código Tributário Nacional (CTN), lei geral sobre as obrigações tributárias, também traz a regra da imunidade nos casos de integralização de imóvel ao capital social, mas com redação um pouco diferente. São seus dizeres:
Situação A | Situação B |
Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto [ITBI] não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior: I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito; II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra. Parágrafo único. O imposto não incide sobre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I deste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos. | Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição. |
Observe que o fato descrito na “Situação A” muito se assemelha à regra constitucional, ou seja, não incide o ITBI sobre a transmissão de bens ou direitos quando efetuada para a incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito, ou quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.
O problema é a aplicação do artigo 37 do CTN, descrito da situação B, que excepciona toda a isenção tributária concedida no artigo anterior, desde que a atividade preponderante da empresa seja voltada à venda, locação e cessão de direitos relativos à propriedade imobiliária.
Lembre-se que o elemento atividade preponderante só se aplica nos casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção da pessoa jurídica, quando houver integralização de capital social por meio de bens imóveis, nos exatos termos da Constituição Federal. No entanto, os Tribunais de Justiça vêm erroneamente interpretando esta situação, de modo a darem eficácia à regra do CTN, em detrimento da Constituição Federal.
A título exemplificativo, observe esta decisão, proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
Apelação. Ação anulatória de lançamento fiscal. Incidência de ITBI sobre integralização de capital social através de bens imóveis. Controvérsia relacionada ao reconhecimento da imunidade tributária. A benesse constitucional do art. 156, §2º, I da CF não é aplicável a contribuinte cuja atividade preponderante seja a compra e venda ou locação de bens imóveis. (…) Saliente-se não convencer o argumento da apelante no sentido de que o Tema 796 do STF viabilizou a concessão da imunidade sobre integralização de capital social de empresa independentemente da atividade por ela exercida. Para tanto, vê-se que tal assunto foi abordado no precedente citado de passagem (“obter dicta”), de modo a não vincular os Tribunais inferiores por não ser acobertada pela coisa julgada. A manutenção da sentença que não reconheceu a imunidade é imperiosa. A solução enseja a majoração da verba honorária, nos termos do art.85, §11, do CPC. Nega-se provimento ao recurso e majora-se a verba honorária, nos termos do acórdão.
Equivocamente, o julgado coloca a exceção posta no CTN a toda e qualquer hipótese de integralização de imóveis ao capital social. Não importa se o objeto social da empresa à qual se transfere imóveis ao capital social seja preponderantemente direcionado a atividades imobiliárias, a regra é incondicionada, nos termos da imunidade concedida pelo constituinte originário. Não é a Constituição Federal que deve se moldar às normas de inferior hierarquia, e sim o contrário!
A exceção da atividade preponderante só é aplicada aos casos de transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica. E, considera-se caracterizada a atividade preponderante: i) quando mais de 50% da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 anos anteriores e nos 2 anos subsequentes à aquisição, decorrer de transações imobiliárias; e ii) Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida levando em conta os 3 primeiros anos seguintes à data da aquisição.
No entanto, os mesmos tribunais vêm revendo seu posicionamento em alguns casos. O próprio TJSP, em recente decisão, declarou que não incidiria o ITBI sobre capital integralizado por imóveis, ainda que a atividade preponderante da pessoa jurídica seja a administração imobiliária, devido ao curto tempo passado desde a sua constituição. Em que pese ser por razões diferentes daqui sustentadas, é plenamente viável (e necessário) rediscutir a matéria. Segue a ementa:
APELAÇÃO CÍVEL Mandado de Segurança – ITBI Integralização de imóveis do sócio ao capital social da impetrante. Pretendida não incidência do tributo municipal, nos termos do art. 156, § 2º, inciso I, da Constituição Federal. Sentença que denegou a segurança almejada. Reforma do r. decisório. Conquanto seu objeto social seja a administração de bens imóveis próprios e no seu cadastro nacional de pessoas conste a compra e venda de imóveis como atividade econômica, trata-se de empresa constituída recentemente, em 2021. Impossibilidade de se aferir a atividade preponderante da impetrante, nos termos do art. 37, § 2º, do Código Tributário Nacional. Não incidência do tributo. Ordem concedida. Recurso provido[1].
Explicando: no caso acima, a pessoa jurídica foi constituída em 2021, ocasião em que seu capital social foi integralizado por meio da transferência de imóveis de seu sócio. Em seu contrato social, consta a administração de bens próprios, e em seu CNPJ, descrita atividade econômica de compra e venda de imóveis próprios. E, apesar da descrição, tal fato, isoladamente, não bastaria para que o município exigisse o ITBI, pois haveria necessidade de aferir se mais de 50% da receita da empresa se lastreia em operações de alienação imobiliária, contado o período de 3 anos a partir de sua constituição, o que seria possível para uma empresa recém-constituída. Lembremos o que diz o já citado § 2º, artigo 37 do CTN:
“Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2(dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior [mais de 50% da receita da atividade empresarial] levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição”.
Assim, nos termos dessa decisão, para pessoas jurídicas recém-constituídas com conferência de imóveis ao seu capital social não poderiam os municípios cobrarem ITBI sobre essa conferência, devendo esperar o transcurso dos três primeiros anos seguintes para verificar a efetiva incidência do imposto.
Sem dúvida, é uma decisão inovadora, em que pese ser isolada neste momento. A temática do ITBI na conferência de imóveis ao capital social de empresas é bastante controvertida e repleta de teses e entendimentos, nem sempre coerentes. Para evitar dissabores inesperados, a questão deve ser analisada cuidadosamente, pesando-se os prós e contras do pagamento do imposto na capitalização ou a sua discussão judicial.
[1] Apelação Cível 1004573-48.2021.8.26.0319, Julgamento em 20.05.2023.
Artur Francisco da Silva é advogado do departamento de wealth planning e tax do BLS Advogados, em São Paulo.