Por David Roberto R. Soares da Silva
Em recentíssima solução de consulta, o fisco paulista se manifestou pela primeira vez sobre os aspectos de ITCMD relacionados com trust estrangeiros, em especial sobre a incidência do imposto e o momento de sua incidência.
Publicada em 4 de abril de 2023, a Resposta à Consulta nº 25343/2022 é a primeira manifestação oficial da Secretaria da Fazenda do estado de São Paulo sobre os aspectos tributários de trusts estrangeiros quando possuem beneficiários residentes em território paulista.
No caso, o contribuinte informara em sua consulta fiscal que era beneficiário de um trust instituído em 2017 por uma pessoa jurídica não residente no exterior. Não há informações sobre o domicílio dessa pessoa jurídica e tampouco sob qual jurisdição fora instituído o trust. O trust seria irrevogável e com prazo de duração de 150 anos.
O cerne da questão envolvendo essa consulta pode ser resumido em dois aspectos distintos, a saber: (1) a natureza jurídica das transferências feitas pelo trust aos beneficiários e (2) se essa transferência estaria sujeita ao ITCMD no estado de São Paulo.
Inicialmente, o contribuinte esclareceu que o patrimônio do trust é “autônomo e distinto dos patrimônios do settlor, do trustee e dos beneficiários, de maneira que nenhum deles possui direito real sobre os bens do trust. Ademais, tais bens e direitos não respondem pelas dívidas pessoais do trustee e tampouco podem ser utilizados pelo trustee para razões distintas daquelas definidas no contrato de trust.”
Em seguida, diz que as distribuições feitas por um trust aos beneficiários ocorre a título gratuito de maneira idêntica a uma doação. Segundo o contribuinte, haveria “um incremento no patrimônio dos beneficiários em virtude de ato não oneroso. O acréscimo é não oneroso porque ele não decorre de qualquer esforço praticado pelo beneficiário ou do emprego de qualquer bem ou direito sobre o qual ele detenha a propriedade ou a posse. Ademais, na situação em tela, expressa que não há qualquer previsão de obrigações ou contraprestações por parte dos beneficiários.”
Sendo uma doação, e estando o trust no exterior, questionou o contribuinte acerca da incidência ou não do ITCMD, ressaltando a decisão do Supremo Tribunal Federal que fixou a tese da inconstitucionalidade da incidência do ITCMD sobre doações de bens localizados no exterior e por doador estrangeiro, dada a inexistência de lei complementar regulando essa incidência (RE nº 851.108/SP – Tema 825 da Repercussão Geral).
Em sua resposta, o fisco paulista faz um breve resumo sobre as controvérsias existentes a respeito da natureza dos direitos dos beneficiários de um trust. Sem entrar em detalhes no mérito dessa análise, o fisco parece concluir que as relações em um trust são de natureza obrigacional, ou seja, negocial ou contratual entre pessoas, não se revelando uma natureza de direito real.
Avançando em sua análise, a resposta à consulta concluir que, “no que tange à estrutura básica do trust (…) , os bens entregues pelo settlor[1] não passam a compor o patrimônio próprio do trustee[2], mas ficam sob o seu controle para o benefício do beneficiário. Nesse sentido, é possível apreender que o destinatário de fato dos direitos sobre esses bens sempre é o beneficiário.”
Esse trecho da consulta é de extrema relevância, pois revela que o fisco paulista entende que os bens de um trust apenas ficam sob a gestão do trustee, mas têm como destinatário final os beneficiários do trust. Em outras palavras, há uma doação – ainda que imperfeita – do settlor ao beneficiário, tendo o trustee como administrador.
É o que revela o trecho a seguir:
“Quando o settlor entrega os bens para a instituição do trust, não se vislumbra mera intenção de realizar investimentos financeiros ou simplesmente salvaguardar o seu patrimônio, mas se pretende fazer esse patrimônio chegar ao(s) beneficiário(s). Exceto na hipótese em que a instituição do trust instrumentalize algum pagamento devido ao beneficiário, o patrimônio é transferido de forma gratuita, havendo o animus donandi, com a intenção de praticar o ato por liberalidade, configurando-se verdadeira doação, com o enriquecimento do beneficiário na medida em que o settlor empobrece.” (destaques nossos)
Com base nessa observação, o fisco paulista entende que não há uma doação do trustee ao beneficiário, mas sim uma doação do settlor ao beneficiário. Vejamos:
“Sendo assim, no momento em que é indicado pelo settlor, o beneficiário passa a ser a ser titular de direitos sobre o trust, se tornando donatário das vantagens definidas no trust. Por outro lado, não há liberalidade nem empobrecimento por parte do trustee ao realizar a entrega de bens ou pagamento de rendimentos ao beneficiário. Na verdade, suas ações são determinadas previamente no contrato.”
Dessa forma, a conclusão fiscal é no sentido de que há uma doação do settlor ao beneficiário no momento em que o settlor institui o trust e não no momento em que o trust faz uma distribuição ao beneficiário.
Concluída pela doação, o fisco analisou a questão acerca da incidência do ITCMD sobre doações do exterior, face à decisão do STF pela inconstitucionalidade do imposto. Nesse ponto, a posição adotada foi no sentido de que Lei Paulista nº 10.705/2000 continua em vigor e que o ITCMD é devido.
Comentários
A posição do fisco paulista é inusitada pela abordagem inédita adotada até o momento pelas autoridades brasileiras.
Relembrando: a resposta à consulta entendeu que, em um trust irrevogável, ocorre uma doação do instituidor ao beneficiário no momento da instituição do trust, independentemente de ter havido uma distribuição subsequente ao beneficiário. E o ITCMD é devido no momento da instituição do trust irrevogável.
Desse resumo, é possível fazer alguns comentários preliminares, sujeitos a uma análise posterior mais profunda. Vejamos:
- Se em um trust irrevogável, a doação ocorre no momento da sua instituição, pois o instituidor/doador apura uma “perda” de patrimônio em favor do beneficiário, em um trust revogável, não há qualquer doação, pois não há perda de patrimônio pelo instituidor. No caso, o direito de revogar garantiria a “manutenção” do patrimônio na esfera do instituidor.
- Além disso, estruturas de trusts revogáveis normalmente contemplam o instituidor como seu primeiro beneficiário. Ora, não há doação para si mesmo, o que corroboraria com o entendimento de que não há doação em trusts revogáveis quando o instituidor for o primeiro beneficiário.
- A incidência do ITCMD na criação do trust irrevogável somente se sustenta porque o fisco estadual não está aplicando a decisão do STF que julgou inconstitucional a cobrança do imposto em doações com doadores no exterior. Assim, por meio de uma ação judicial, seria possível afastar essa cobrança.
- O entendimento do fisco paulista conflita com a posição da Receita Federal expressado na Solução de Consulta COSIT nº 41/2020, na qual o fisco federal entendeu que distribuições a partir de trusts no exterior são considerados rendimentos tributáveis para fins de IRPF.
A se conformar com os posicionamentos do fisco federal e do fisco paulista, temos a pior situação de todas: incidência simultânea de IRPF e ITCMD, o que contraria regras legais e constitucionais em vigor.
A mensagem que fica, ao menos nesse momento, é a insegurança jurídica trazida pelas estruturas de trust para residentes no Brasil. A falta de compreensão adequada pelas autoridades brasileiras pode tornar essa poderosa ferramenta de planejamento sucessório internacional em uma fonte de insegurança e preocupação. Por fim, vale notar que o posicionamento adotado pelo fisco paulista se aproxima bastante do tratamento tributário proposto no Projeto de Lei Complementar nº 145/2022, que foi tema de dois artigos recentes de minha autoria[3].
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2020), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos publicados pela Editora B18.
[1] Instituidor do trust.
[2] Espécie de gestor, administrador do trust.
[3] Acesse: https://www.b18.com.br/comentarios-ao-projeto-de-lei-que-regula-o-tratamento-tributario-de-trust-parte-1/ (aspectos de ITCMD e ITBI) e https://www.b18.com.br/comentarios-ao-projeto-de-lei-que-regula-o-tratamento-tributario-de-trust-parte-2 (aspectos de imposto de renda).
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