Por David Roberto R. Soares da Silva
Nos aproximamos do último mês para a entrega da Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda (DAA) e, para aqueles que mantêm ativos no exterior, ainda há dúvida sobre dois aspectos importantes trazidos pela Lei nº 14.754/2023: a opção pelo tratamento transparente (para quem possui empresas offshore) e a atualização do valor dos bens no exterior. É sobre esses dois temas que trataremos neste artigo.
A ideia aqui é passar um pouco de informações práticas para ajudar os contribuintes a refletirem sobre as consequências de cada uma dessas possibilidades. Já dando um spoiler sobre os temas, tem-se que o tratamento transparente é uma péssima ideia para a quase totalidade das situações e, a atualização do valor dos bens é mais vantajosa para quem detém ativos na pessoa física ou em situações excepcionais para aqueles que possuem estruturas no exterior.
Vejamos as razões que me levaram a essas conclusões.
Tratamento transparente
A Lei nº 14.754/2023 estabeleceu um novo regime tributário para aqueles que possuem entidades controladas no exterior localizadas em paraíso fiscal ou que aufiram substancial (mais de 40%) renda passiva. Para simplificar a terminologia, chamaremos essas entidades simplesmente de empresas offshore. Por meio do regime de tributação anual automática, os lucros apurados por empresas offshore nessas condições devem ser tributados na DAA do ano seguinte independentemente de sua efetiva distribuição ao acionista residente no Brasil.
Alternativamente a essa tributação automática, a Lei nº 14.754/2023 permite que a pessoa física adote o chamado tratamento fiscal transparente, por meio do qual a offshore continua a existir legalmente, mas para fins de IRPF, o contribuinte deve substituir a sua participação declarada na ficha “Bens e Direitos” da DAA pelos ativos subjacentes detidos pela empresa offshore.
É o que determina o Art. 8º da lei, nestes termos:
Art. 8º. Alternativamente ao disposto nos arts. 5º, 6º e 7º desta Lei, a pessoa física poderá optar por declarar os bens, direitos e obrigações detidos pela entidade controlada, direta ou indireta, no exterior como se fossem detidos diretamente pela pessoa física.
O tratamento transparente foi inicialmente considerado como a maneira pela qual contribuintes detentores de empresas offshore pudessem evitar reconhecer lucros e ganhos não realizados no resultado da entidade e, com isso, deixassem de pagar IR sobre um lucro ainda não existente. Em artigo escrito ainda antes da edição de Lei nº 14.754/2023[1], mas que ainda continua plenamente válido, demonstrei que as regras vigentes permitem que o contribuinte somente reconheça os ganhos efetivamente realizados como lucro tributável da offshore, não precisando adotar o tratamento transparente para atingir o mesmo objetivo.
Assim, o principal argumento para uma suposta adesão ao tratamento transparente deixa de existir.
Mas não é só isso.
A escolha pelo tratamento transparente pode trazer diversos e amargos dissabores àqueles que optarem por esse método.
O primeiro deles diz respeito à necessidade de segregar os diversos tipos de rendimentos da offshore, pois pode ocorrer que alguns deles não se sujeitem à nova alíquota de 15% estabelecida pela Lei nº 14.754/2023 para as aplicações financeiras e lucros de controladas no exterior.
É o caso, por exemplo, dos rendimentos de aluguel. No tratamento opaco, os aluguéis compõem o lucro da offshore e somente serão tributados no final do ano à alíquota de 15%, depois de deduzidas uma série de despesas, como depreciação, custos de manutenção, impostos prediais etc. Caso o contribuinte adote o tratamento transparente, ele passará a declarar o imóvel diretamente na DAA, e os rendimentos de aluguel no exterior não estarão sujeitos ao IRPF de 15% na DAA, mas sim ao pagamento mensal do IR na forma do Carnê-Leão, com alíquotas de até 27,5%. É o que diz o inciso IV, do § 2º do Art. 8º da lei, que exige que se aplique o tratamento tributário adequada para cada tipo de ativo informado na DAA a partir da escolha do tratamento transparente:
Art. 8º. (…)
§ 2º A pessoa física que optar pelo regime tributário previsto neste artigo em relação às participações detidas em 31 de dezembro de 2023 deverá:
IV – tributar a renda auferida a partir de 1º de janeiro de 2024 com os bens e direitos e aplicar as regras previstas na Seção II desta Lei, quando se tratar de aplicações financeiras no exterior, ou as disposições específicas previstas na legislação em conformidade com a natureza da renda.
Ou seja, o contribuinte que adotar o tratamento transparente somente se beneficiará da alíquota de 15% – criada pela Lei nº 14.754/2023 – para os ganhos e rendimentos de aplicações financeiras. Para os demais ganhos e rendimentos, deverá adotar o regime tributário aplicável ao respectivo ganho ou rendimento.
É o caso, também, dos ganhos de capital na alienação de bens que não são considerados aplicações financeiras, como é o caso da alienação de imóveis, aeronaves e outros bens não financeiros, e de participações societárias não negociadas em mercado secundário, como pode ser o caso de venda de participações em startups ou cotas de fundos de private equity. Esses ganhos não são considerados de aplicações financeiras e, portanto, devem ser tributados às alíquotas aplicáveis aos ganhos de capital, de 15% a 22,5%.
Não pensar nesse efeito pode trazer algumas surpresas desagradáveis em um momento de evento de liquidez. Além disso, tanto o IR devido pelo Carnê-Leão como o ganho de capital nessas alienações deve ser pago no mês seguinte ao recebimento do preço e não na DAA do contribuinte. Ou seja, além de uma alíquota possivelmente mais alta, o prazo de pagamento do imposto acaba sendo mais curto.
Outra desvantagem do tratamento transparente é a impossibilidade de dedução de despesas e compensação de certas perdas ou prejuízos. Explico.
No tratamento opaco, as despesas e perdas relacionadas com os bens detidos pela empresa offshore podem ser deduzidas e reduzem o lucro tributável do final do exercício. É o caso, por exemplo, de despesas com manutenção de imóvel, aeronaves, embarcações, impostos prediais, taxas anuais, depreciação e até mesmo despesas com contador, prestados de serviço, agente registrado e despesas legais. No tratamento transparente, nenhuma despesa é passível de dedução, o que aumenta o rendimento tributável, que ainda pode estar sujeito a uma alíquota mais elevada, como visto há pouco.
Outra desvantagem do tratamento transparente diz respeito à alavancagem de carteira. Não é incomum que investidores obtenham empréstimos junto aos bancos com taxas de juros baixas, e utilizem esses recursos para investimentos, normalmente em renda fixa que paga juros maiores do que aqueles cobrados pelos bancos. Com isso, a diferença entre os juros recebidos e os juros pagos ao banco se torna rendimento para o contribuinte. No tratamento opaco, será esse rendimento líquido que estará sujeito à tributação no final do ano (depois de deduzidas eventuais despesas). No tratamento transparente, o contribuinte deverá oferecer o rendimento bruto recebido, sem a possibilidade de deduzir os juros pagos sobre o empréstimo tomado junto ao banco. Na prática, acaba por pagar imposto sobre um rendimento que não ficará com ele, mas com o banco.
Por fim, a maior desvantagem do tratamento transparente é a captura e tributação da variação cambial sobre a venda e resgate de ativos mantidos pela offshore. Vejamos um exemplo.
A offshore de João comprou um bond no valor de USD 100 mil quando o dólar estava a R$ 4,00 e esse bond é resgatado anos depois pelo mesmo valor, quando o dólar está a R$ 6,00. No tocante aos juros recebidos no período, os rendimentos serão tributados à mesma alíquota de 15%, com a diferença de que, no tratamento transparente João não poderá deduzir nenhuma despesa da offshore contra esse rendimento.
No entanto, o maior impacto está no resgate ou venda do bond. No tratamento opaco, o resgate do bond pelos mesmos USD 100 mil não terá efeito tributário, pois tanto o custo de aquisição como o preço de venda ou resgate são determinados em USD, ou seja, não há qualquer rendimento ou ganho adicional a ser apurado e tributado na offshore.
Se João, por outro lado, adotar o tratamento transparente, o resgate do bond por USD 100 mil quando o dólar estiver a R$ 6,00 irá gerar um ‘ganho’ de R$ 200 mil (R$ 600 mil menos R$ 400 mil), que será tributado à alíquota de 15%, gerando um IR de R$ 30 mil. Ao final, João terá ficado mais pobre em moeda estrangeira, pois terá R$ 570 mil depois de pago o imposto, o que representaria USD 95 mil (R$ 570 mil / R$ 6,00).
Essa sistemática de capturar a variação cambial vale para qualquer bem e direito que seja informado na DAA em razão da adoção do tratamento transparente.
Por fim, a compensação de prejuízos e perdas. No tratamento opaco, a perda com a venda de um bem – uma embarcação, por exemplo -, poderá ser deduzida contra outros rendimentos auferidos no ano, sejam eles ganhos de capital, rendimentos financeiros etc. No tratamento transparente, somente as perdas apuradas com aplicações financeiras podem ser utilizadas para compensar rendimentos de aplicações financeiras. A perda com a venda de uma embarcação, no tratamento transparente, não pode ser deduzida dos rendimentos com aplicações financeiras, podendo ocasionar um aumento da carga tributária.
Nos últimos meses, trabalhando com dezenas de clientes com ativos no exterior, para nenhum deles as simulações realizadas sugeriram que o tratamento transparente seria mais vantajoso.
É claro que podem existir exceções, mas para isso é necessário analisar cada caso, evitando assumir que o tratamento transparente será realmente mais benéfico.
Avaliação de Bens no Exterior (ABEX)
A Lei nº 14.754/2023 criou a possibilidade de as pessoas físicas atualizarem o valor dos bens e direitos mantidos no exterior para o valor de mercado em 31.12.2023 mediante o pagamento de uma alíquota fixa de 8%. É o chamado programa de Atualização de Bens no Exterior, ou ABEX. Se ocorresse fora da nova lei, esse ganho estaria sujeito à uma tributação mais eleva: de 15%, para aplicações financeiras, ou de 15% a 22,5% para o ganho de capital de outros bens que não fossem aplicações financeiras.
A atualização é facultativa e deve ser exercida durante o período de entrega da DAA de 2024, ano-base 2023, com o pagamento do imposto até 31.05.2024 .
O foco aqui não são as regras do ABEX, mas os seus efeitos práticos.
Em linhas gerais, o ABEX pode ser interessante para os contribuintes que mantenham bens no exterior diretamente na pessoa física e não por meio de empresas offshore. A “vantagem” também vale para quem vier a adotar o tratamento transparente para a sua offshore.
No mais, a adoção do ABEX para quem detém offshore no tratamento opaco pode ser um desperdício de dinheiro, especialmente se o titular da offshore não necessitar acessar vultosos recursos em um curto espaço de tempo (até 2 anos). Isso porque o ABEX tem como consequência aumentar o valor do investimento registrado na offshore, e antecipar o pagamento do IR sobre o lucro auferido até 31.12.2023, que, caso contrário, somente seria tributado (à alíquota de 15%) se e quando fosse acessado pelo contribuinte.
Vale lembrar, ainda, que os lucros da offshore gerados a partir de 01.01.2024 serão tributados automaticamente todos os anos, gerando um crédito de dividendo a receber a partir de 2025 que não estará sujeito à tributação adicional depois do pagamento de 15% na DAA.
Não havendo necessidade de acesso vultoso ou rápido aos recursos da offshore, sendo possível esperar para retiradas a partir de 2025, o ABEX não parece fazer sentido.
De todos os casos analisados até o momento, em somente dois deles o ABEX se mostrou mais vantajoso. Em um dos casos, o contribuinte desejava encerrar a offshore e trazer os recursos ao Brasil onde poderia investir em títulos incentivados sem o pagamento de IR. Nesse caso, o ABEX se justificava, pois o acesso aos recursos ocorreria em um curto espaço de tempo. Mas, mesmo assim, é importante mencionar que o ABEX não foi a eliminação completa da tributação no desfazimento da estrutura.
Isso porque a atualização pelo ABEX considera um dólar a R$ 4,8413. Qualquer resgate ou remessa de recursos por um dólar acima dessa cotação irá gerar um ganho de capital adicional que será tributado à alíquota de 15%. Quando essas linhas eram escritas, o dólar passava de R$ 5,17, o que representava uma apreciação de quase 7% .
Outro caso que justificou o ABEX dizia respeito à capitalização de ativos financeiros em uma offshore. O contribuinte mantinha ativos financeiros na pessoa física em 2023 e no começo de 2024 resolveu criar uma offshore. De acordo com o § 4º do Art. 8º da Lei nº 14.754/2023, a capitalização de ativos em uma empresa offshore que adote o tratamento opaco deve ocorrer pelo seu valor de mercado, com a apuração de ganho de capital, não sendo mais possível a capitalização pelo valor do ativo constante da DAA. Nesse caso específico, o ABEX também se mostrou vantajoso, pois aumentou o custo de aquisição dos ativos financeiros a um custo tributário de 8%, reduzindo o montante que, na capitalização a valor de mercado, estaria de outra forma sujeito à alíquota de 15%.
Dito isso, a mensagem que fica é que a adoção de ABEX deve ser precedida de uma análise cuidadosa dos bens a serem atualizados e, mais importante do que isso, dos objetivos de curto, médio e longo prazo do titular desses bens, especialmente se forem participação em empresa offshore que adote o tratamento opaco.
A adoção equivocada do ABEX pode gerar uma antecipação desnecessária de imposto, sem um efeito prático benéfico ao contribuinte.
[1] Disponível em https://www.b18.com.br/o-pl-4173-offshore-e-a-falacia-da-tributacao-do-lucro-nao-realizado/
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor de Tributação das aplicações financeiras, empresas offshore e trusts no exterior (2024), Construindo o Planejamento Patrimonial e Sucessório: Análise de casos reais (2023), do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), todos publicados pela Editora B18.
EXCLUSIVIDADE EDITORA B18: O MAIS COMPLETO LIVRO SOBRE A TRIBUTAÇÃO DOS ATIVOS NO EXTERIOR, CRIADA PELA LEI Nº 14.754/2023.
Interessante artigo. Já se deparou com algum caso em que a offshore no exterior possui investimento em uma empresa no Brasil? Me parece que o manual da Abex não prevê essa opção. Como você entende que deve ser declarado na ABEX e na DAA? Não me parece razoável que a atualização seja feita pelo valor de PL da offshore, visto que ele contém valores de lucros auferidos no Brasil, isentos de tributação. Além disso, a Lei diz que bens e direitos no Brasil não estão sujeitos a atualização.