Em janeiro de 2020 a imprensa revelou que a Receita Federal iniciou processo de fiscalização contra 43 dos principais artistas da Rede Globo, abrindo um debate sobre a existência da uma “guerra” contra a emissora ou apenas o cumprimento do dever fiscalizatório do Estado contra a evasão fiscal.
Os procedimentos fiscalizatórios teriam sido iniciados ao final de 2019 com a solicitação dos contratos sociais das empresas pelas quais os artistas recebiam a remuneração pelos serviços prestados à emissora de TV. A medida tinha por objetivo verificar a regularidade e a adequação do instituto da “pejotização” por parte dos artistas, com consequências nas esferas tributárias, previdenciárias e trabalhistas.
Passados oito meses desde a veiculação dessas notícias, o tema voltou ao noticiário em setembro de 2020 informando que os primeiros artistas começaram a receber autos de infração com a exigência de impostos, multas e juros.
Embora a mídia tenha vendido as notícias como um ataque direto do atual governo à Rede Globo, as notas oficiais da emissora e da Receita Federal não deixam margem para tal argumento.
Em nota, a Rede Globo diz entender que a fiscalização é tão legal quanto seu próprio direito de defesa. A Receita Federal, por sua vez, informou que a fiscalização é pautada por critérios técnicos e impessoais, sendo que a operação especial de fiscalização contra abusos na “pejotização” resultou na lavratura de mais de 343 autos de infração.
Aqui estamos diante de uma fiscalização que busca distinguir verba salarial da receita bruta da pessoa jurídica. Essa distinção é importante, pois existindo uma clara relação de emprego entre contratante e contratada, as duas empresas envolvidas estão claramente se beneficiando de um planejamento tributário abusivo e ilegal, caracterizando a evasão fiscal.
Ainda que não estejamos diante de um assunto novo, ele ganha maior relevância por conta da exposição pública dos envolvidos. Com a atualização da notícia, informando que os primeiros artistas receberam os autos de infração com exigência de imposto de renda e multa de 75%, mantém-se o velho questionamento: qual é o limite da elisão fiscal no Brasil?
Primeiramente, vale dizer que, diferentemente da sonegação (evasão) fiscal, a elisão fiscal é a prática pela qual se define um planejamento tributário lícito e não abusivo. É a prática pela qual o contribuinte, antes da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, se vale de atos lícitos que resultam na menor onerosidade fiscal. É a conduta lícita que visa impedir o nascimento da obrigação tributária.
Vejamos a aplicação desses conceitos ao caso “Rede Globo”.
No contrato CLT o artista recebe salário. Este salário é tributado de acordo com a tabela progressiva do Imposto de Renda, cujas alíquotas variam de 7,5% a 27,5%, sendo que a alíquota máxima é aplicada à renda mensal superior a R$ 4.664,68.
Além dos 27,5% de IR, na modalidade CLT o artista é ainda obrigado a contribuir para a seguridade social (INSS). A alíquota desta contribuição social varia de 7,5% a 14% e é aplicada de forma progressiva sobre as faixas de salário, sendo a alíquota de 14% aplicável à faixa de salário que ultrapassar R$ 3.050,53. No entanto, a contribuição ao INSS é limitada a R$ 713,09, independentemente do salário final recebido.
Já no contrato PJ quem recebe a remuneração é a empresa do artista. Nesse caso, a depender do valor anual recebido, a empresa será tributada em torno de 16,5%, já contabilizada a contribuição previdenciária.
As obrigações tributárias e previdenciárias não são exclusivas do contratado.
No regime CLT, a empresa contratante é ainda obrigada a recolher 20% ao INSS sobre a remuneração paga ao funcionário. Sobre esta remuneração ainda incidem o Risco de Acidente do Trabalho (RAT) de até 3%, 5,8% de contribuições ao sistema S, além do recolhimento obrigatório de 8% ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Ou seja, o salário do empregado custa ao patrão cerca de 28,8% a mais em encargos sociais.
Na contratação de PJ, esse percentual de 28,8% de encargos sociais é pago pela empresa contratante.
Além das obrigações tributárias e previdenciárias elencadas acima, o contrato CLT ainda acarreta encargos trabalhistas que aumentam o custo deste tipo de contrato, tais como o 13º salário, férias remuneradas, adicional de férias, horas extras, descanso semanal remunerado, adicional noturno, adicionais de insalubridade e periculosidade, entre outros.
Não há encargos trabalhistas no contrato PJ.
Para ilustrar a menor onerosidade do planejamento com a contratação de PJ ao invés de empregado CLT, utilizaremos uma remuneração-base mensal de R$ 100.000,00. No regime CLT, o empregado pagaria R$ 713,09 de INSS, R$ 26.434,54 de IR e receberia um salário líquido de R$ 72.852,37 (alíquota efetiva de 27,15%.).
Já o contratante pagaria R$ 20.000,00 de INSS, R$ 2.000,00 de RAT, R$ 5.300,00 de Sistema S e R$ 8.000,00 de FGTS, totalizando R$ 35.300,00.
Excluindo os encargos trabalhistas, a empresa contratante desembolsaria aproximadamente R$ 135.000,00 para o contratado receber um valor líquido de R$ 72.852,37.
No contrato PJ, os mesmos R$ 100.000,00 gerariam a tributação na contratada de cerca de 16,5%, resultando num rendimento líquido mensal de R$ 83.500,00. A contratante, por sua vez, não teria despesas com contribuições sociais, INSS, FGTS e demais encargos trabalhistas.
Ou seja, para uma remuneração de R$ 100.000,00, a contratante desembolsaria os mesmos R$ 100.000,00 para o contratado receber um valor líquido de R$ 83.500,00.
Em suma, no contrato PJ desembolsa-se menos para garantir um valor maior ao prestador de serviços.
Ressalta-se que não há qualquer ilegalidade em optar pelo contrato PJ, desde que observados todos os critérios da lei trabalhista, tributária, previdenciária e empresarial, evitando o abuso de forma e a caracterização da evasão fiscal.
Percebe-se que o planejamento tributário legal e não abusivo compartilha de elementos comuns em seus atos com o planejamento tributário ilegal e abusivo, tais como a intenção, a finalidade e o resultado produzido. Nada obstante, estes institutos podem e devem ser diferenciados.
Para que se tenha uma ideia da linha tênue que diferencia o planejamento tributário legal do planejamento tributário ilegal, recebemos onde o contrato PJ foi descaracterizado pela Receita Federal pela falta de apresentação de livros empresariais. Note que, por lei, os livros empresariais são considerados dispensáveis em uma sociedade limitada, desde que a dispensa seja expressamente prevista em contrato social. No caso, não estava.
Veja como um pequeno detalhe pode gerar uma dor de cabeça inimaginável.
Para evitar dissabores como esses, recomenda-se a consulta com um profissional especializado em planejamento tributário antes do primeiro passo de um projeto que envolva formas de contrato e remuneração. O planejamento deve ser muito bem documentado com motivações econômicas que não se limitam à mera economia tributária.
É cada vez mais comum que casos de planejamento tributário sejam analisados sob o seu aspecto econômico e não apenas formal, documental.
Um artista que trabalhe para uma única empresa com regularidade, sendo a ela subordinado, com 13 salários pagos durante o ano, férias remuneradas etc., tenderá a ser considerado um empregado.
Já o artista que participe de programas numa emissora de TV, mas também faça propaganda e comerciais, tenha um programa de rádio, faça ou produza peças de teatro, cinema, participações em produções independentes etc., não deverá ser considerado um empregado de uma emissora. Há vários elementos econômicos que justificam a sua “pejotização” como forma de empreender no mundo cultural, devendo a Receita Federal reconhecer esse elemento e não interferir na forma como o artista conduz as suas atividades.
A linha é tênue e, por isso, não deve ser considerada de menor importância. Artistas devem sim, consultar especialistas para que seus planejamentos tributários sejam efetivos e legais, minimizando os riscos de questionamento pelo fisco.
Felipe Pereira Louzada é tributarista especializado em tributação de pessoa física, associado do Battella, Lasmar & Silva Advogados em São Paulo, e coautor do e-book Saída Definitiva do País – Guia Prática das Obrigações Tributárias, publicado pela Editora B18.