Me desculpem o trocadilho, mas é que não poderia ser diferente. Tudo começou em 2008, como uma resposta à crise financeira global, com a intenção de substituir o dinheiro físico e afastar a necessidade da presença dos bancos nas operações financeiras e a submissão a regulamentações de governo.
Desde então, o Bitcoin, e todo o sistema de criptoeconomia, passou a estar cada vez mais presente no cenário do brasileiro, se tornando um tipo muito atrativo de alocação de dinheiro para investimentos diversos ou com fins de reserva de valor.
Ao contrário do que alguns esperavam, a ascensão das criptomoedas e a adoção de tecnologias blockchain foram muito rápidas, conquistando desde os jovens investidores, empresas de todos os portes e inclusive grandes – e, a princípio, conservadores – investidores.
As cotações da criptomoeda chegaram a superar US$ 50 mil ao longo do ano de 2020, e cravaram uma valorização acumulada de 276% em dólares ao longo de 12 meses. A explicação é simples: a expansão da liquidez internacional provocou uma acentuada migração dos investidores para ações e commodities, e esse movimento não poupou os criptoativos.
E o direito nesse meio todo?
Foi só ano passado, em 2021, que a Receita Federal do Brasil (RFB) incluiu códigos próprios para declaração de criptoativos na DIRPF, uma vez que, até então, eles eram declarados sob o “código 99 – outros”.
Em matéria sucessória, os ativos, sejam bens ou direitos, alocados em plataformas sucessórias e que podem ser transmitidos aos herdeiros são chamados de herança digital. E, tendo natureza patrimonial, são objeto de inventário e partilha, devendo obedecer às leis sucessórias do país. Dentre muitos dos possíveis ativos que podem compor as heranças digitais, estão as criptomoedas.
A combinação entre as criptomoedas e a sucessão provoca o que, neste artigo, chamaremos de “criptodesafio”, derivado da dificuldade de localização desses criptoativos após o falecimento do seu titular.
Não há maiores problemas se o de cujus se utilizava de empresas para armazenamento de seus bens. Bastaria, neste caso, que o magistrado oficiasse à empresa custodiante para que, na sequência, proceda-se com a liquidação do saldo pela conversão em moeda fiduciária (Fiat Currency), no caso das exchanges e depósito em conta judicial do inventário.
Contudo, nosso “criptodesafio” persiste quando o possuidor dos ativos realiza a custódia por conta própria, por meio de carteiras, como as cold wallets ou paper wallets. E esse movimento não é raro: segundo dados da Glassnode divulgados por seu analista William Clemente¹, o balanço de bitcoin das exchanges caiu para o menor nível desde 2018. Para o mercado, as criptomoedas estarem saindo das exchanges para serem mantidas em segurança sob custódia dos próprios investidores, sinalizando que eles não têm interesse em vendê-las tão cedo, o que aumenta as chances da composição de inventários pelos criptoativos, e necessariamente resulta um maior armazenamento deles fora de exchanges.
Ocorre que, nesses casos, as informações da bitcoin e outras criptomoedas são registradas em um blockchain e só podem ser acessados via chaves privadas (seed phrase), essas que não podem ser transferidas senão pelo próprio investidor.
As soluções alternativas para esse “criptodesafio” são muitas, mas como efetivamente assegurar aos sucessores o acesso a estes ativos, em caso de morte do possuidor? Será que o mero compartilhamento da chave é uma boa opção?
Para muitos, não. Contudo, o ordenamento jurídico brasileiro ainda não dispõe de um instituto capaz de solucionar efetivamente a questão, apenas alguns meios que podem contornar esse “criptodesafio” e amparar, ainda que sujeito a falhas, os herdeiros, desde que tratado através de um planejamento sucessório.
Uma das alternativas apontadas pela doutrina, ainda que diametralmente oposta à ideia de descentralização apontada pelo criptoativo, é o uso do testamento, que pode ser escrito pelo próprio testador e possui caráter sigiloso.
O testamento cerrado é originado do direito Romano, tendo sido criado por uma constituição dos Imperadores Teodósio e Valentiniano III no ano 439, e posteriormente regulamentado no código de Justiniano. O uso dessa ferramenta tão “clássica” de planejamento sucessório para tutelar um ativo tão “moderno” chega a ser irônico, mas funciona. No Brasil, as formalidades desta espécie estão estabelecidas no artigo 1.868, do Código Civil.
“Art. 1.868. O testamento escrito pelo testador, ou por outra pessoa, a seu rogo, e por aquele assinado, será válido se aprovado pelo tabelião ou seu substituto legal, observadas as seguintes formalidades:
I – que o testador o entregue ao tabelião em presença de duas testemunhas;
II – que o testador declare que aquele é o seu testamento e quer que seja aprovado;
III – que o tabelião lavre, desde logo, o auto de aprovação, na presença de duas testemunhas, e o leia, em seguida, ao testador e testemunhas;
IV – que o auto de aprovação seja assinado pelo tabelião, pelas testemunhas e pelo testador.
Parágrafo único. O testamento cerrado pode ser escrito mecanicamente, desde que seu subscritor numere e autentique, com a sua assinatura, todas as páginas.”
A sua vantagem, como elucida o professor Carlos Roberto Gonçalves, “consiste no fato de manter em segredo a declaração de vontade do testador, pois em regra só este conhece o seu teor. Nem o oficial nem as testemunhas tomam conhecimento das disposições, que, em geral, só vêm a ser conhecidas quando o instrumento é aberto após o falecimento do testador”.
Nesse sentido, na morte do investidor, pode o advogado requerer a abertura do documento e, dada a peculiaridade do caso, pleitear a nomeação de perito especializado para apuração do quanto equivale em moeda nacional a carteira de criptoativos e a sua consequente liquidação.
Bem em verdade que esta é apenas uma hipótese, de tantas que podem ser adotadas para a preservação do patrimônio do investidor. Sendo certo que, de toda forma, os investimentos em criptomoedas, que já são a terceira modalidade de investimentos preferida dos brasileiros que aplicam via plataformas, conforme estudo é capitaneado pela Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV EESP), importam um planejamento específico para permitir o efetivo acesso pelos herdeiros no falecimento da pessoa, em busca de mitigar este “criptodesafio” na sucessão.
Giovana Naldi Marcondes é advogada e congressista especializada nas área de planejamento patrimonial e sucessório, coordenadora da área de Wealth Planning no SA Law, em São Paulo/SP.
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