Holdings são sociedades empresárias constituídas para o fim de gerir participações societárias e outras espécies de bens, como imóveis, por exemplo.
Em grande parte, as holdings têm seu patrimônio formado por participações societárias e/ou outras espécies de bens, como bens imóveis. A conferência de imóveis ao capital social de uma holding pode apresentar diversas vantagens, do ponto de vista de proteção patrimonial, planejamento sucessório, redução da carga tributária incidente sobre os rendimentos e sobre a venda, em situações específicas.
Quando há a formação do capital social com a integralização de bens imóveis, uma das consequências pode ser a incidência do Imposto sobre Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis – ITBI, que é o imposto incidente sobre as operações onerosas que envolvem bens imóveis e que muitas vezes, vem sendo exigido de forma indevida pelos Municípios, como demonstraremos a seguir.
1. ITBI: Aspectos gerais
A Constituição Federal, em seu artigo 156, II estabelece a hipótese de incidência do ITBI, outorgando aos municípios a competência para sua instituição:
Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (…)
II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição.
Na mesma linha dispõe o artigo 35 do Código Tributário Nacional (CTN). Ou seja, ambos estabelecem que o fato gerador do ITBI é a transmissão inter vivos de bens imóveis, por ato oneroso.
2. Imunidade do imposto na integralização de bens imóveis ao capital social de pessoas jurídicas
Embora a integralização de um imóvel ao capital social de uma pessoa jurídica seja inequivocamente um ato oneroso que, em tese, estaria dentro da hipótese de incidência do imposto, a própria Constituição estabeleceu a imunidade dessa operação, verbis:
Art. 156 (…)
§ 2º O imposto previsto no inciso II:
I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;
O CTN igualmente prevê que a exceção à cobrança do tributo se dará quando o imóvel for transmitido em forma de incorporação do capital de pessoa jurídica, senão vejamos:
Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:
I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito.
Por outro lado, a Constituição, no mesmo inciso que trata da imunidade concedida à operação de integralização de capital social e outras operações societárias, igualmente estabeleceu a exceção à essa imunidade, ou seja, estabeleceu que não está imune a operação quando a atividade preponderante da pessoa jurídica adquirente for a compra e venda, locação ou arrendamento de bens imóveis (inciso I do §2º do artigo 156, acima transcrito)
Redação parecida encontra-se no CTN, que definiu que essas atividades serão consideradas preponderantes quando mais da metade da receita operacional da pessoa jurídica for decorrente daquelas atividades, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos posteriores à integralização, para o caso das sociedades já existentes e em caso de sociedades novas, nos 3 (três) anos subseqüentes à integralização:
Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.
§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinqüenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subseqüentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.
§ 2º. Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.
§ 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre o valor do bem ou direito nessa data.
§ 4º O disposto neste artigo não se aplica à transmissão de bens ou direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante.
Em função do §3º do artigo 37 do CTN, o ITBI só pode ser cobrado depois de verificada a ocorrência do requisito estabelecido pelo art. 156, § 2º, inciso I da Constituição, ou seja, depois de verificada a preponderância de eventuais atividades de compra e venda, locação ou arrendamento de bens imóveis ou direitos à ele relativos. Antes de verificada a ocorrência de tal requisito, o Município está impossibilitado de cobrar o ITBI.
Não há dúvidas de que o Fisco Municipal deve esperar o transcurso do prazo de 2 ou 3 anos, conforme o caso, para, uma vez verificada a preponderância da atividade imobiliária, lançar o tributo. Nesse sentido, veja-se o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo:
(…) Como a incorporação dos imóveis no capital social ocorreu no mesmo ato de alteração do objeto social da pessoa jurídica (em 08/03/2021), sendo que não somente exerce atividade relacionada a imóveis, o afastamento da imunidade prevista no artigo 156, § 2º, I da CF/88 está condicionada a prova do efetivo exercício de atividade imobiliária preponderante nos três anos subsequentes à integralização do imóvel – Aplicação do art. 37, §2º, do CTN – Precedentes desta Câmara – Decisão reformada – Recurso Provido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2205381-39.2021.8.26.0000; julgamento em 11/11/2021.
Apelação – ITBI – Contribuinte ingressou com pedido de imunidade de ITBI por via administrativa – Imunidade não reconhecida – Integralização de imóveis que compõem o capital social e contrato social da empresa que indica como uma das atividades a administração de bens imóveis próprios – Atividades da empresa que se iniciaram juntamente com a integralização do imóvel – Aplicação do artigo 37, §2º, CTN – Municipalidade deverá verificar as atividades da empresa após três anos da sua constituição – Presunção em favor do contribuinte – RECURSO DESPROVIDO. (TJSP, Apelação Cível 1002078-24.2019.8.26.0441; Relatora; Mônica Serrano; Órgão Julgador: 14ª. Câmara de Direito Público; Foro de Peruíbe 2ª. Vara; Data de Julgamento: 19/05/2020; Data de Registro: 19/05/2020)
No mesmo sentido: TJSP, TJSP; Apelação Cível 1001351-05.2018.8.26.0246, julgamento em 25/11/2021; Apelação Cível 1031153-40.2021.8.26.0053, julgamento em 07/04/2022; Agravo de Instrumento 2024674- 42.2022.8.26.0000, julgamento em 15/03/2022
3. O julgamento do Tema 796 pelo STF e o equivocado entendimento das municipalidades
Julgando o Tema 796, o STF adotou o entendimento de que é constitucional a cobrança do ITBI sobre o valor do bem que ultrapassar o valor integralizado ao capital social. Em razão desse julgamento, as Municipalidades de todo o país têm cobrado o ITBI sobre o valor dos bens integralizados que ultrapassam o valor do capital social.
Cabe dizer que a Lei 9.249/96 permite que os bens sejam integralizados ao capita social da pessoa jurídica, pelo valor histórico ou de mercado. Via de regra, os bens imóveis são integralizados ao capital social de uma holding pelo seu valor de aquisição (valor que consta da declaração de bens e direitos do conferente). Isso se dá, para evitar a incidência do IR sobre o ganho de capital, que incide caso o bem seja transferido por valor superior ao valor histórico.
Os Municípios, com fundamento no julgamento do Tema 796, têm exigido o ITBI relativo à diferença entre o valor de mercado do bem e o valor histórico pelo qual é integralizado. Assim, uma pessoa física proprietária de um imóvel adquirido por R$ 200 mil (o valor que consta da sua Declaração de IR), cujo valor de mercado é de R$1 milhão, integralizar esse bem ao capital social de uma holding por R$ 200 mil, ela corre o risco de a municipalidade entender que apenas esse valor estaria isento, e que a diferença de R$800 mil deveria ser tributada pelo ITBI, pois não estaria abrangida pela imunidade.
Os Municípios têm fundamentado esse entendimento em uma interpretação equivocada do julgamento do Tema 796.
Isso porque, essa situação corriqueira de integralização de um bem ao capital social de qualquer pessoa jurídica, inclusive das holdings, pelo seu valor histórico, não guarda qualquer similitude com o caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal. No caso analisado pelo julgamento, não houve a simples integralização do pelo valor histórico do bem, ao capital social de uma pessoa jurídica. O bem imóvel foi transferido para a holding por valor superior ao valor histórico, sendo que parte do valor foi transmitido para a formação do capital social e a outra parte para a formação de reserva de capital, sendo que o STF entendeu que o valor transferido para a formação da reserva de capital não está acobertado pela imunidade.
Dessa forma, claramente não se aplica o Tema 796 aos casos em que os imóveis são transferidos para a holding pelo seu valor histórico, sem a formação de reserva de capital. Nesse sentido, veja-se importante precedente do TJSP:
(…) Imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis. Alegação de não incidência por se cuidar de transferência de bens, decorrente de incorporação a patrimônio de pessoa jurídica, em realização de capital. Procedência. Bem imóvel destinado à constituição de capital social, não à formação de reserva de capital. Diferenciação com o caso analisado no julgamento do tema 796 das questões constitucionais de repercussão geral. Recurso provido. (TJSP; Apelação 1000084-08.2022.8.26.0456, julgamento em 24/08/2023).
Nesse sentido o voto condutor destacou que no caso julgado pelo Tema 796, houve a destinação de parte do valor do bem transferido à pessoa jurídica, para a formação de reserva de capital, situação diversa das hipóteses em que os bens são transferidos pelo valor de custo integralmente destinado à formação do capital social. Vejamos:
A situação fática na análise do tema 796 das questões constitucionais com repercussão geral era diferente: ali os imóveis foram transmitidos em parte para integralizar capital social e em parte para constituir reserva de capital. Decidiu-se que não há imunidade tributária no que toca à parcela destinada à reserva de capital. Aqui, mui diversamente, não se controverte a respeito da destinação integral do bem para formação do capital social, mas antes sobre o valor do imóvel a ser transmitido: o município, sem razão, entende que se não pode considerar o valor histórico, mas antes o valor venal adotado para fins de lançamento do ITIBI, pena de não incidência da diferença do tributo eventualmente apurada.
O artigo 23 da Lei 9.249/95 admite que as pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, à título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado. Legitima nesses termos a conduta da impetrante.
Ainda no mesmo sentido, temos os seguintes julgados do TJSP: AC 10027585220188260438, publicado em 07/01/2021; Apelação Cível 1007968- 30.2022.8.26.0637, julgamento em 24/01/2024
O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás também já se manifestou no sentido de que a hipótese de integralização de bem ao capital social de pessoa jurídica, pelo valor histórico, não guarda similitude com o caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal:
APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. ITBI. INCIDÊNCIA ENTRE A DIFERENÇA DO VALOR DO BEM DECLARDO PELO CONTRIBUINTE EM SUA DECLARAÇÃO DE IRPF E CONSEQUENTEMENTE O VALOR INTEGRALIZADO, E O VALOR AVALIADO PELO MUNICÍPIO QUANDO DA INTEGRALIZAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL. NÃO CABIMENTO. ISENÇÃO DEVIDA.
1. É uma faculdade da parte quando da integralização do capital social por meio de transferência de bem imóvel, fazê-lo pelo exato valor constante da declaração do IRPF ou pelo valor de mercado.
2. Não há que se falar na cobrança de ITBI em relação à diferença do valor do bem declarado pelo contribuinte e o valor avaliado pelo município, pois ao contribuinte faculta-se deliberar por um ou por outro. (…). (TJGO, Apelação Cível: 5075092-67.2022.8.09.0076. julgamento em 07/03/2023).
Cabe destacar trecho do voto condutor, verbis:
Todavia, valendo-se de interpretação equivocada da decisão proferida pela Suprema Corte, os municípios passaram a cobrar o ITBI de maneira indevida, uma vez que “exceder o limite do capital social a ser integralizado tem sido interpretado como sendo a diferença entre o valor do bem declarado pelo contribuinte em sua declaração de IRPF, e consequentemente o valor integralizado, e o valor avaliado pelo município quando da integralização do capital social.
Ocorre que, esta interpretação além de violar o que restou consignado no próprio julgado do STF, o qual ressalvou que “a legislação tributária expressamente autoriza a transmissão do imóvel pelo valor de custo/declarado, viola também a previsão do art. 23 da Lei Federal 9.249/1995, que dispõe que: as pessoas físicas poderão transferir a pessoas jurídicas, a título de integralização de capital, bens e direitos pelo valor constante da respectiva declaração de bens ou pelo valor de mercado.
Veja que, quando da integralização do capital social por meio da transferência de bem imóvel, pode o contribuinte fazê-lo pelo exato valor constante da declaração do IRPF ou pelo valor de mercado, ou seja, é uma faculdade da parte deliberar por um ou por outro.
É importante registrar que, em momento algum o julgado do STF facultou aos municípios a cobrança de ITBI sobre a diferença do valor declarado e do valor avaliado pelo município. Tal questão sequer fora objeto de análise e de debates no julgamento.
Em outras palavras, o fato é que, se o montante ultrapassar o valor a ser integralizado pelo sócio, o ITBI incidirá sobre a diferença, o que não é o caso dos autos.
Por isso, não há que se falar na cobrança de ITBI incidente entre a diferença do valor do bem declarado pelo contribuinte e o valor avaliado pelo município, pois ao contribuinte faculta-se deliberar por um ou por outro.
4. Conclusão
Para o desenvolvimento de seu objetivo social, as holdings recebem de seus sócios, bens móveis e imóveis, à título de integralização do capital social. Quando esses bens, são imóveis, poderia se cogitar da incidência do ITIBI, por se tratar de uma operação onerosa com bens imóveis, fato gerador do ITBI.
Entretanto, a Constituição imuniza da incidência do ITBI as operações de integralização de bens imóveis ao capital social de pessoas jurídicas, excluindo dessa imunidade apenas os casos em que a sociedade receptora tenha atividade preponderantemente imobiliária. E o CTN estabelece que se considera atividade preponderantemente imobiliária para fins de incidência do ITBI quando mais da metade da receita operacional da pessoa jurídica for decorrente daquelas atividades, nos dois anos anteriores e dois anos posteriores à integralização para o caso das sociedades já existentes e em caso de sociedades novas, nos três anos subseqüentes à sua constituição. Dessa forma, fica evidente que os fiscos municipais não podem cobrar o ITBI, antes de aguardar o transcurso do prazo de dois ou três anos, conforme o caso concreto.
De outro lado, os municípios não podem exigir o ITBI incidente sobre a diferença entre o valor de mercado do bem e o valor de integralização, como vêm fazendo invocado o Tema 796 do STF, ao julgar o Recurso Extraordinário no. 796.376, posto que, naquele julgamento, se entendeu que não está acobertado pela imunidade o valor do bem destinado a formação de reserva de capital, não se podendo aplicar aquele tema, para os casos em que os bens são recebidos pelo seu valor histórico integralmente destinado ao capital social.
Aluisio Velloso Grande é advogado atuante em Direito Societário e Planejamento Societário e Sucessório, Especialista pela PUC/SP e FGV, com LLM em Direito Societário. Professor convidado da Escola Superior de Advocacia e do Curso de Pós Graduação em Finanças da Universidade Federal de Goiás, disciplina Planejamento Sucessório e Gestão de Grandes Fortunas.
A leitura foi extremamente enriquecedora e sem dúvida contribui de forma significativa para os profissionais que militam nesta área. Muita clareza na exposição dos conceitos e fundamentos constitucionais e infraconstitucionais que estabelecem a isenção na integralização do capital social e a opção de fazê-la pelo valor de declaração do I.R, aliada à uma análise criteriosa do tema 796/STF.
Meus cumprimentos e votos de sucesso em futuras pesquisas.