Por Daniela Ispirian Mir Gelamo, CFP®
Deixar um legado é uma das principais respostas dada ao título deste artigo. E quanto ao seu significado não há dúvidas: o que é transmitido às gerações que se seguem.
Queremos deixar nossa marca no mundo, sentir que nossa vida vale a pena, ser lembrado como alguém que ensinou e praticou atitudes valorosas. Exercer nossa vocação com a missão de fazer algo que o mundo precise. Isto tudo é, em grande parte, a essência do legado.
Em sua origem, no âmbito jurídico, a palavra legado representa também o que uma pessoa deixa em seu testamento, ou seja, a disposição de última vontade pela qual o testador deixa a alguém um valor fixado ou uma ou mais coisas determinadas (dicionário Houaiss). Ou seja, tanto no significado mais popular ou no âmbito jurídico, o legado representa algo que vamos deixar neste mundo.
Refletindo sobre estas duas formas de significar o legado, observamos que em ambas a morte pode fazer parte do contexto. Tanto a transmissão de princípios quanto a de bens ou valores financeiros podem ser realizadas enquanto estamos vivos, mas o cerne desta transmissão vem após a morte.
Frente ao exposto, por que ao falarmos de legado não nos inquietamos com a realidade da morte? Por que cuidamos em deixar um legado, mas não queremos falar sobre um testamento? Talvez a resposta seja simples. Talvez ela esteja simplesmente no fato de ligarmos a palavra legado ao ato de fazer algo bom. Uma conexão com um futuro sem nomeá-lo como morte.
Porém, falar de testamento já é bem diferente. Ele concretiza a ideia de que iremos morrer. Ele nos faz encarar a morte de frente, gerando desconforto e nos distanciando da forma racional e prática que um testamento pode ser feito.
“Le soleil ni la mort ne se peuvent regarder fixement.” François de La Rochefoucauld
Nesta frase, o duque francês La Rochefoucauld traz à reflexão a dificuldade de se encarar o sol diretamente, da mesma forma que é incômodo fazer o mesmo com a morte. Fazer um testamento pode ser simples e exequível tecnicamente, mas a inquietude que ele pode gerar ao nos conectar de frente com a morte faz com que muitos de nós ignoremos esta ferramenta importante, que inclusive faz parte do legado que buscamos deixar.
Interessante notar que, no ano em que o mundo teve que encarar muitas mortes devido a uma pandemia (COVID-19), o número de testamentos realizados no Brasil cresceu mais de 41%. Como dito, infelizmente o testamento sempre está ligado a morte e talvez seja por isso que, ao lado dos inúmeros atestados de óbito registrados em cartório estavam também sendo registrados muitos testamentos.
Infelizmente, não só pelo incomodo da lembrança da morte, o testamento não é algo comum nas discussões de famílias brasileiras devido ao preconceito de que ele serve só para quem tem muito dinheiro. É claro que, quando se fala em altos valores financeiros, o testamento pode sim se tornar indispensável e até trazer um texto mais amplo para cobrir todos os bens e formas de sucessão. Mas todos os indivíduos, sejam mais afortunados ou não, podem se beneficiar desta ferramenta para ser aquilo que quiser ser quando morrer. Para ser lembrado como alguém que cuidou para que sua despedida não gerasse tristeza além daquela sentida pela ausência do ser querido. Alguém que buscou evitar conflitos e garantir conforto para seus estimados.
O testamento é um ato pessoal e livre. Ele pode ser feito por qualquer pessoa com idade acima de dezesseis anos com plena consciência e discernimento no momento de redigi-lo. Para uma divisão patrimonial simples, pode ser escrito utilizando-se de exemplos disponíveis na internet. Entretanto, cria-lo com a ajuda de um advogado é extremamente recomendado e seguro.
Não basta escrever uma carta, colocar na gaveta e acreditar que seu desejo, ou diria, seu legado, será transmitido conforme sua vontade. Mas esta carta, se escrita corretamente, lida e assinada por três testemunhas, pode sim ser reconhecida como um testamento válido: o chamado testamento particular. Além deste, existem os testamentos público e cerrado que são feitos de forma onerosa em cartório.
Sem entrar no detalhe de cada forma de testamento, meu objetivo neste artigo é desconstruir a visão da morte ao se falar em testamento. Tanto ele como o legado podem ser considerados irmãos gêmeos, primos, parceiros ou como quiser. O importante é refletir sobre os dois com a mesma alma cheia de vida, que busca deixar para mundo os seus valores (literais ou não).
Procure entender se o testamento faz sentido para você sem o preconceito de que ele seja a carta de sua morte. Busque clareza com algumas destas dicas que deixo abaixo.
- Entenda detalhadamente seu regime de casamento ou união estável, identificando a diferença entre uma divisão de patrimônio em caso de separação versus morte.
- Busque orientação quanto ao que você pode fazer com seu patrimônio. Uma regra importante da legislação brasileira expressa que apenas metade de seu patrimônio pode ser disponibilizado para aqueles que não são herdeiros. Quando há filhos e/ou cônjuge, por exemplo, irmãos e pais não recebem herança.
- Garanta sua vontade no cuidado com os filhos menores ou com necessidades especiais. Na falta dos dois responsáveis (pai, mãe, entre outros), certifique-se que deixará registrado em testamento aquele em quem confie para cuidar dos bens de seus dependentes.
- Conheça todos os meios de sucessão que possam atender a sua vontade – o testamento não é o único.
Há quem diz que um testamento deve ser evitado pois ele pode gerar maiores transtornos em uma sucessão. Este argumento pode se tornar verdadeiro se o testamento não foi feito com cuidado ou ainda se feito sem real necessidade.
Por isso, não crie barreiras ao ouvir ou falar sobre testamento. Ouça sobre os prós e contras e busque esclarecimentos para que seu legado seja transmitido com eficiência e tranquilidade. Providencie todos os cuidados para que você seja aquilo que deseja ser quando morrer.
Daniela Ispirian Mir Gelamo, CFP® é planejadora financeira pessoal em São Paulo/SP.
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