Inegável é o fato de que os anos de 2020 e 2021 foram marcados pela pandemia decorrente da COVID-19, que forçou as pessoas a um isolamento social na tentativa de diminuição do contágio do novo coronavírus. O medo de morrer sem deixar instruções aos seus entes queridos, reverberou no íntimo dos brasileiros, e assim, fez com que, a procura por testamento crescesse de forma vertiginosa.
Sobre esse instituto, o testamento é uma declaração unilateral de manifestação de última vontade, por meio do qual o testador pode dispor dos seus bens, designando seus herdeiros testamentários e legatários, cujos efeitos serão produzidos após a sua morte.
A legislação brasileira admite três formas de testamento ordinário: o testamento público, o testamento cerrado e o testamento particular.
O testamento público é realizado por tabelião de notas que toma as declarações de última vontade do testador e faz o seu registro no livro de notas do tabelionato. É chamado de público devido à formalidade e oficialidade da sua elaboração, mas o seu conteúdo somente será conhecido após a morte do testador.
O testamento particular é aquele preparado pelo próprio testador sem a intervenção de um tabelião e sem qualquer registro público. É o ato de última vontade do testador, por ele assinado e lido na presença de três testemunhas que também assinam, obrigando-se as mesmas a confirmar a autenticidade do testamento após a morte do testador. Como no testamento particular não há o envolvimento do tabelião, o documento deve ficar na posse de alguma pessoa da confiança do testador que o apresentará por ocasião do seu falecimento.
Por fim, o testamento cerrado é uma combinação do testamento particular e público. Ele é preparado pelo próprio testador e levado ao tabelião para aprovação e lacre oficial. A aprovação do testamento deve ser presenciada por duas testemunhas, que não precisam saber do seu conteúdo. O tabelião deverá lavrar o auto de aprovação ao fim do testamento e o lerá para as testemunhas e testador, sendo assinado por todos. Concluída a leitura do auto de aprovação, o testamento será colocado em envelope e lacrado pelo tabelião. Ninguém além do próprio testador fica sabendo do que foi escrito. Nesse modelo, o envelope com o documento é costurado e só após da morte do testador, que o envelope é aberto por um juiz na frente dos herdeiros.
Sendo o testamento um dos mais solenes atos civis, damos ênfase ao questionamento da possibilidade de se elaborar testamento gravado em sistema audiovisual. O chamado testamento em vídeo vem sendo muito discutido entre os juristas, e seria um testamento efetuado mediante um processo mecânico, e, portanto, particular, onde o testador filma, exibe bens, cenas e testemunhas, contextualizando a sua vontade final post mortem.
Ressalta-se que não se trata de um novo instituto, mas sim do aperfeiçoamento da forma em que é realizado o testamento particular. Ou seja, em vez de o falecido ser obrigado a expressar a sua última vontade mediante documento escrito, poderia realizá-la por intermédio de uma gravação em vídeo.
Tramita no Senado o Projeto de Lei nº 3.799/2019, de autoria da Senadora Soraya Thronicke (PSL/MS), no qual se prevê a inclusão de novas tecnologias para que haja a devida adequação do Livro de Sucessões ao tempo digital em que a sociedade se encontra. Uma de suas propostas é a alteração do art. 1.876 do Código Civil, para que passe a permitir a utilização de recurso audiovisual para a feitura do testamento particular.
Assim vejamos a comparação entre o testamento particular do CC/2002 e do Projeto de Lei n° 3.799/19:
CC/2002: | Projeto de Lei n° 3.799/19: |
CC/2002: Art. 1.876. O testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico. | Art. 1.876. O testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico, ou pode ser gravado em sistema de som e imagem. |
§1ᵒ Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever. | §1ᵒ Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever. |
§2ᵒ Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão. | §2ᵒ Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão. |
§3º Se realizado por sistema digital de som e imagem, deve haver nitidez e clareza na gravação das imagens e sons, bem como declarar a data da gravação, sendo esses os requisitos essenciais à sua validade, além da presença de três testemunhas identificadas nas imagens. | |
§4º O testamento deverá ser gravado em formato compatível com os programas computadorizados de leitura existentes na data da celebração do ato, contendo a declaração do testador de que no vídeo consta o seu testamento, bem como a sua qualificação completa e das testemunhas. |
De antemão, sobre a possibilidade de o testamento particular ser feito em vídeo, o Anteprojeto explana que “o sistema de audiovisual oferecerá uma maior segurança a respeito do conteúdo das disposições testamentárias, pois estaremos ouvindo a própria voz do testador. É o testador quem vai explicar a sua última vontade, o que vai reduzir a necessidade de utilização de recursos hermenêuticos para a interpretação do testamento”.
Por conseguinte, a principal indagação que deve ser refletida nesse momento é se a substituição do papel pela plataforma audiovisual, não poderia ser operada desde já pelos Tribunais, independentemente da aprovação de nova lei.
Sobre essa perspectiva, mencionamos a recente decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.633.254-MG), onde a Corte decidiu ser válido um testamento particular que, a despeito de não ter sido assinado de próprio punho pelo testador, contou com sua impressão digital.
Assim transcrevemos ementa:
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONFIRMAÇÃO DE TESTAMENTO PARTICULAR ESCRITO POR MEIO MECÂNICO. OMISSÃO E OBSCURIDADE NO ACÓRDÃO RECORRIDO. INOCORRÊNCIA. QUESTÃO ENFRENTADA E PREQUESTIONADA. SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA. AUSÊNCIA DE ASSINATURA DE PRÓPRIO PUNHO DO TESTADOR. REQUISITO DE VALIDADE. OBRIGATORIEDADE DE OBSERVÂNCIA, CONTUDO, DA REAL VONTADE DO TESTADOR, AINDA QUE EXPRESSADA SEM TODAS AS FORMALIDADES LEGAIS. DISTINÇÃO ENTRE VÍCIOS SANÁVEIS E VÍCIOS INSANÁVEIS QUE NÃO SOLUCIONA A QUESTÃO CONTROVERTIDA. NECESSIDADE DE EXAME DA QUESTÃO SOB A ÓTICA DA EXISTÊNCIA DE DÚVIDA SOBRE A VONTADE REAL DO TESTADOR. INTERPRETAÇÃO HISTÓRICO-EVOLUTIVA DO CONCEITO DE ASSINATURA. SOCIEDADE MODERNA QUE SE INDIVIDUALIZA E SE IDENTIFICA DE VARIADOS MODOS, TODOS DISTINTOS DA ASSINATURA TRADICIONAL. ASSINATURA DE PRÓPRIO PUNHO QUE TRAZ PRESUNÇÃO JURIS TANTUM DA VONTADE DO TESTADOR, QUE, SE AUSENTE, DEVE SER COTEJADA COM AS DEMAIS PROVAS.
(…) 2- Os propósitos recursais consistem em definir se: (i) houve omissão relevante no acórdão recorrido; (ii) é válido o testamento particular que, a despeito de não ter sido assinado de próprio punho pela testadora, contou com a sua impressão digital”. (STJ – REsp: 1633254 MG 2016/0276109-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 11/03/2020, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 18/03/2020)
Segundo a ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, a jurisprudência do STJ permite, excepcionalmente, a relativização de algumas das formalidades exigidas pelo Código Civil no âmbito do direito sucessório. Ademais, segundo seu entendimento, “o papel e a caneta esferográfica perdem diariamente o seu valor“, devendo a real manifestação de vontade ser examinada em conjunto com os elementos disponíveis.
Nessa mesma perspectiva, a 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), de relatoria do Desembargador Gilberto Clóvis Farias Matos e proferida em dezembro de 2019, confirmou a validade de testamento particular que contou com gravação em vídeo. No caso, o Relator entendeu que estavam presentes as formalidades e que eventual irregularidade teria sido apenas vício formal, não sendo suficiente para a invalidade do testamento. Além disso, consta vídeo da falecida no momento da leitura do testamento às testemunhas presentes:
“APELAÇÃO CÍVEL. PROCEDIMENTO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. REGISTRO E CUMPRIMENTO DE TESTAMENTO PARTICULAR. OBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS LEGAIS. FLEXIBILIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DO C. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MANUTENÇÃO DA R. SENTENÇA. DESPROVIMENTO DOS RECURSOS.
(…) 5. Testamento que existe, foi assinado pela testadora e por quatro testemunhas. Análise que se restringirá à observância dos requisitos previstos no artigo 1.876 do Código Civil.
6. Alegação de que a testadora teria lido o testamento de forma “artificial” e “mecânica”, o que demonstraria que não foi a própria que redigiu o referido documento, não impressiona. A lei não exige que a redação do testamento seja fruto da criatividade própria do testador, mas deve refletir, fielmente, o desejo do testador.
7. Lucidez mental e discernimento da testadora devidamente comprovado por um atestado médico.
8. Versões narradas pela ex-funcionária do lar da testadora que não se revestem de credibilidade, a qual mudou repentinamente sua narrativa, após ter sido descoberto o vídeo filmado por um dos herdeiros no momento em que a falecida leu o testamento para as testemunhas.
9. No vídeo, não há dúvida de que a senhora que lê o testamento é a falecida, e que algumas das testemunhas se encontram, de fato, presentes. Ausência de indícios de constrangimento, descontentamento, nervosismo ou irritação por parte da testadora, ou seja, nada que leve a crer que a mesma não estava lendo o seu testamento por livre e espontânea vontade.
10. Versão da quarta testemunha que destoa de todo o arcabouço probatório. Porém, eventual irregularidade na colheita de sua assinatura não importa na nulidade do respectivo testamento.
11. Lei que exige a subscrição de três e não quatro testemunhas.
12. Vícios relativos à quantidade de testemunhas ou da ausência da leitura do testamento a todas elas, na mesma ocasião, são puramente formais, que se relacionam essencialmente com aspectos externos do documento que formaliza o testamento.
13. O C. Superior Tribunal de Justiça, em mais de uma oportunidade, decidiu que as formalidades prescritas em lei, no tocante às testemunhas, devem ser flexibilizadas, “quando o documento tiver sido escrito e assinado pelo testador e as demais circunstâncias dos autos indicarem que o ato reflete a vontade do testador”. 14. Recursos desprovidos”. (TJ-RJ – APL: 01322255420158190001, Relator: Des(a). GILBERTO CLÓVIS FARIAS MATOS, Data de Julgamento: 10/12/2019, DÉCIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL).
Em suma, o que podemos notar é que os tribunais brasileiros devem seguir flexibilizando cada vez mais as formalidades testamentárias, dando voz às intenções do testador em seu ato de última vontade em detrimento dos rigorosos requisitos do Código Civil.
Por fim, acreditamos que, em breve, o testamento por vídeo será uma realidade no Brasil, uma vez que garantirá segurança e facilidade ao ato, o que virá a refletir verdadeira revolução capaz de melhor operacionalizar os atos sucessórios.
Ana Bárbara Zillo é advogada do departamento de wealth planning do Battella, Lasmar & Silva Advogados.
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