Por David Roberto R. Soares da Silva
A sucessão de empresas offshore tem sido objeto de análise e preocupação por parte daqueles que fazem investimentos internacionais por meio dessas estruturas.
Não são poucos os casos em que titulares das ações dessas empresas falecem em seus países de origem sem qualquer medida sucessória, exigindo que as suas ações sejam inventariadas no país de registro da empresa. Essa situação pode ser traumática, pois os sucessores devem adotar uma série de medidas e incorrer em custos para fazer valer seus direitos sucessórios sobre as ações, que inclui a abertura de inventário e partilha das ações no exterior.
No Brasil, situações como essas são comuns e, não raro, os titulares de empresas offshore mantêm seus investimentos sem qualquer medida de proteção que assegure uma sucessão tranquila das ações aos seus herdeiros. Várias são as medidas disponíveis, como o joint-tenancy with rights of survivorship, o trust, o mini-trust, a fundação privada, ações classe A e B etc.
Destinos comuns para o registro de empresas offshore são as ilhas caribenhas como Cayman, Bahamas, Bermudas e as ilhas Virgens Britânicas e muitas outras. Embora possuam legislações próprias, essas localidades têm em comum a origem do direito inglês como base do seu sistema legal, que por sua vez adota o sistema da common law. Trata-se de um sistema jurídico baseado em decisões proferidas pelos Tribunais, diferente daquele utilizado em países como o Brasil, França, Itália etc. (conhecido como civil law), cujo sistema se baseia na codificação do Direito em leis e códigos e na interpretação dessas regras pelos tribunais e operadores do direito.
Vários países cujo sistema legal se baseia na common law não possuem que estabeleçam a ordem hereditária, ou seja, quem é o titular dos bens deixados pelo falecido, incluindo regras de legítima e disponível. Não raro, nesses países o titular é livre para deixar seus bens para quem quiser, desde que assim o faça por meio de testamento.
A falta de testamento por parte do titular de uma empresa offshore – residente no Brasil, por exemplo – pode criar problemas adicionais em caso de sucessão. Sem uma medida sucessória adequada e sem testamento, o tribunal da jurisdição offshore regida pela common law deverá, em primeiro lugar, determinar quem são os sucessores com direito a receber as ações para, então, proceder à partilha. Como a lei local não determina essa regra sucessória, podem ocorrer embates entre os sucessores.
Uma forma de minimizar essa situação tem sido a elaboração de testamento na mesma jurisdição da offshore. Embora não evite o inventário, o testamento agiliza a determinação de quem são os sucessores legitimados a receber as ações.
Mas, e quando não há esse testamento?
Em casos envolvendo residentes no Brasil, a “solução” tem sido esperar o fim do inventário brasileiro – que não pode incluir as ações da offshore – para se poder demonstrar ao Tribunal estrangeiro da jurisdição offshore quem são os herdeiros e qual o seu respectivo quinhão. Com isso, a partilha brasileira pode servir de base para o tribunal da jurisdição offshore decidir sobre a partilha das ações.
Uma decisão recente do Tribunal de Apelação do Caribe Oriental (Eastern Caribbean Court of Appeal) parece trazer uma “solução” para quem não se precaveu de medidas sucessórias com relação às ações de empresas offshore registradas nas Ilhas Virgens Britânicas (BVI).
O Tribunal reconheceu a validade, em BVI, de um testamento estrangeiro para fins de inventário e partilha de ações de uma empresa registrada em BVI.
O caso tratou se referia a patrimônio deixado pelo Sheikh Saoud Mohammed Al Thani, do Catar, falecido em 2014 em Londres. Depois de sua morte, foi encontrado registro de um testamento oral no Tribunal da Sharia devidamente feito e assinado por um juíz no Catar em 1990. Por este testamento oral, o Sheikh Al Thani deixava parte de seus bens móveis e imóveis para sua irmã, sobrinha e seu braço direito.
Esse testamento gerou uma série de disputas sucessórias em vários países, chegando, também, a BVI em razão de o falecido ter deixado patrimônio nessa localidade.
O Tribunal de Apelação do Caribe Oriental usou os princípios da common law para estabelecer a validade e exequibilidade dos testamentos estrangeiros em BVI. Para ele, uma pessoa domiciliada no exterior que falecer possuindo bens imóveis nas Ilhas Virgens Britânicas terá sucessão e administração desses bens regidas pelas leis de BVI, enquanto a lei do domicílio estrangeiro determinará a sucessão e administração de bens móveis localizadas nas Ilhas Virgens Britânicas .
Segundo o Tribunal, a Lei de Sociedades Comerciais de BVI estabelece que as ações de uma empresa registrada em BVI são bens móveis e sua distribuição na sucessão deve estar de acordo com a lei do domicílio do testador falecido. O local da propriedade das ações é BVI para fins de determinação de questões relativas ao direito de propriedade e à jurisdição, mas a lei de BVI não se estende a outros assuntos, como regras de sucessão.
Com base nesse entendimento, o Tribunal reconheceu a validade do testamento oral registrado no Catar e também a sua executoriedade para determinar a partilha das ações da offshore de BVI nos termos do testamento do Catar.
O caso chamou a atenção por estabelecer um precedente importante para outras situações similares no futuro.
Embora não tenha o condão de evitar a abertura de processo de inventário naquela localidade, o testamento feito fora de BVI, no local de domicílio do titular das ações, pode agilizar o processo e auxiliar o Tribunal de BVI a determinar com rapidez quem são os herdeiros e qual a parcela das ações da offshore de BVI deve ser atribuída a cada herdeiro.
No caso de brasileiros detentores de ações de empresas em BVI sem qualquer medida de proteção sucessória, pode-se pensar em cláusula de testamento brasileiro que manifeste o desejo de como bens no exterior devam ser partilhados. Embora essa disposição não tenha validade para fins de inventário no Brasil, que não poderá incluir as ações em BVI, ela facilitará o inventário e partilha das ações no exterior.
Os Tribunais brasileiros têm reconhecido e aplicado compensações em partilhas envolvendo bens no Brasil e no exterior. Em outras palavras, mesmo sem fazer partilha de bens no exterior, já há decisões que consideram patrimônio deixado a um herdeiro no exterior para fins de determinar ajustes na partilha dos bens deixados no Brasil.
Por ora, esse precedente vale apenas para BVI, mas não é impossível que em breve outras jurisdições adotem entendimento similar. De qualquer forma, a inserção de disposição sobre o assunto em testamento brasileiro parece ser recomendável independentemente do local de registro das ações da offshore, valendo ressaltar, por fim, de que há formas mais efetivas de garantir a sucessão desse tipo de patrimônio no exterior.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista, também especializado em planejamento patrimonial e sucessório. É sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), Renda Variável: Investimentos, Tributação e Como Declarar (2021), e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.
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