Por Vanessa Chincoli
Cumpre registrar, desde logo, que os enteados não possuem direito de herança, pois não constam no rol dos herdeiros legítimos (necessários ou facultativos), somente podendo ser herdeiros testamentários ou herdeiros legítimos necessários caso seja reconhecida a filiação socioafetiva ou adoção unilateral.
Isso porque o art. 1845[1] do Código Civil estabelece como herdeiros necessários da pessoa falecida os seus ascendentes (ou seja, seus pais, avós e bisavós), os descendentes (filhos, netos e bisnetos) e o cônjuge ou companheiro. Lembrando que, pela ordem do art.1.829[2] do Código Civil e seguintes, os herdeiros mais próximos de uma classe excluem os mais remotos, por exemplo: se uma pessoa falece sem testamento deixando filhos vivos e netos, apenas os filhos herdarão, uma vez que os filhos são seus descendentes de primeiro grau e os netos são descendentes de segundo grau e os mais próximos (descendentes de primeiro grau) excluem os mais remotos próximos (descendentes de segundo grau).
O mesmo art. 1.829 do Código Civil também engloba os parentes colaterais (os tios, irmãos, sobrinhos e primos até o quarto grau), sendo classificados como herdeiros facultativos, ou seja, esses herdeiros só serão chamados à sucessão caso o falecido não tenha deixado ascendentes, descendentes, cônjuge ou companheiro. Ademais, essa classe de herdeiros facultativos permite que o dono do patrimônio possa afastá-los do seu recebimento da sua futura herança por meio de testamento, pois eles não são herdeiros necessários (“obrigatórios”) como assim como os herdeiros previstos no art. 1.845 do Código Civil.
Assim, por exemplo, se uma pessoa não possui nenhum herdeiro necessário, mas possui um irmão ou qualquer outro parente colateral (tio, sobrinho ou primo) significa que essa pessoa pode fazer um testamento beneficiando qualquer outra pessoa (uma pessoa jurídica, uma entidade de caridade) excluindo esse parente colateral do recebimento da sua herança. Todavia, se ela não fizer testamento, aí sim, todo o seu patrimônio irá para o seu irmão (pois será o único herdeiro).
Compreendida a diferença entre herdeiros necessários e facultativos, voltemos à questão envolvendo os enteados. Como já visto, o Código Civil não inclui os enteados no rol dos herdeiros legítimos. Diante disso, mesmo que um padrasto não tenha descendentes ou ascendentes vivos, o enteado nada herdará. O padrasto terá como sua herdeira legítima e necessária apenas a companheira ou cônjuge (que é mãe, portanto, desse enteado).
Todavia, existem formas de o enteado ter direito ao recebimento da herança do padrasto ou madrasta:
- Se o padrasto ou madrasta fizer um testamento beneficiando o(a) enteado(a) como herdeiro(a), podendo destinar uma porcentagem do seu patrimônio (no limite de 50% do total, caso possua algum herdeiro necessário vivo ou todo o patrimônio, casa não os tenha) ou pode beneficiá-lo como legatário, destinando um bem específico do seu patrimônio para ele(a) após a sua morte. A orientação é sempre no sentido de que se faça um testamento público, pois garante maior segurança;
- Se o padrasto ou madrasta fizer uma doação para o(a) enteado(a) como herdeiro(a), podendo destinar até o 50% do total do seu patrimônio, caso possua algum herdeiro necessário vivo;
- Ou se o padrasto ou madrasta reconhecer esse enteado(a) como filho(a) socioafetivo(a), o que pode ser feito pela via extrajudicial, diretamente no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais mais próximo da residência onde moram[3], quando se tratar de criança ou adolescente maior de 12 anos; ou pela via judicial, quando a criança tiver menos de 12 anos.
A respeito da mãe do enteado, ou seja, sobre a cônjuge ou companheira do padrasto, ela, em regra, será herdeira, notadamente quando não há concorrência dessa com ascendentes ou descendentes do padrasto.
Contudo, é necessário pontuar para uma hipótese especifica: caso esse padrasto não tenha filhos (caso os seus filhos tenham falecido antes dele), mas tenha netos (filhos do filho pré-morto), ela não será herdeira dele caso tenham casado pelo regime da separação obrigatória de bens.
Isso porque o art. 1.829, inciso I é bem claro ao dispor que a sucessão legítima e a herança será partilhada entre os descendentes (podendo ser de qualquer grau, incluindo netos e bisnetos), em concorrência com o cônjuge ou companheiro sobrevivente com exceção nos casos em que eles tiverem escolhido o regime da comunhão universal, comunhão parcial de bens (sobre os bens que já são comuns, aquestos) ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.641, Código Civil)[4].
Logo, as pessoas que vivem em união estável ou são casados sob o regime da separação obrigatória de bens, não serão herdeiras umas das outras quando existirem descendentes. Nesses casos, somente haverá direito de herança caso o titular do patrimônio faça um testamento beneficiando o cônjuge ou companheiro sobrevivente.
O Direito de Família e o Direito Sucessório possuem muitas minúcias que devem ser muito bem observadas pelo profissional no caso concreto.
Vale lembrar que mesmo havendo uma relação afetiva entre enteado(a) e padrasto ou madrasta, essa relação por si só não altera os direitos e efeitos sucessórios, os quais permanecem exclusivos dos herdeiros legítimos (necessários ou facultativos) e dos herdeiros testamentários. Claro que podem ocorrer exceções, em que a relação afetiva entre enteado(a) e padrasto ou madrasta chegam a alcançar contornos de uma relação parental de socioafetividade. Vale dizer: quando eles não se entendem como enteado(a) e padrasto ou madrasta, mas, sim, como verdadeiros pais e filhos.
Nesse caso, estamos diante da parentalidade ou filiação socioafetiva, o que permite que o enteado(a) se torne um herdeiro(a) legítimo(a) necessário(a), mas essa possibilidade não decorre do fato de ser enteado(a), mas, sim, decorre do desenvolvimento da relação de socioafetividade entre eles e do seu reconhecimento como tal[5].
E essa questão deve ser pontuada porque não são raras as vezes em que a relação entre enteado e padrasto/madrasta se desenvolve para uma parentalidade ou filiação socioafetiva mas, infelizmente, as partes não formalizaram essa socioafetividade em vida. Dessa forma, muitas vezes, as pessoas vão postergando o reconhecimento desse vínculo da socioafetividade por pensarem que não virão a faltar tão cedo… mas, uma fatalidade pode ocorrer a qualquer momento e, assim, ocorrer o falecimento sem a formalização desse vínculo socioafetivo.
E isso pode gerar uma situação muito desagradável, como, por exemplo: um padrasto e um enteado que passaram a ser verdadeiros pai e filho por meio do afeto diário em família (socioafetividade). Esse padrasto nunca chegou a formalizar a filiação socioafetiva perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais e ele vem a falecer em um acidente de carro, junto com a mãe do seu enteado (que, para ele, era seu filho socioafetivo). Lembrando que esse padrasto poderia ter feito um testamento reconhecendo a paternidade socioafetiva desse enteado, mas, nesse exemplo, isso também não foi feito.
No caso em tela, se esse padrasto tivesse um outro filho ou qualquer outro herdeiro legítimo vivo (facultativo ou necessário), esse enteado não terá nada a receber de herança e terá que mover uma “ação de reconhecimento de paternidade sócioafetiva post mortem”.
Essa possibilidade tornou-se amplamente conhecida em 2016, quando o STJ reconheceu, em decisão unânime, a possibilidade do reconhecimento da paternidade sócioafetiva post mortem, ou seja, após a morte do autor da herança.[6]
Assim, ainda que as partes se mantenham inertes em vida é possível, após o falecimento, o ajuizamento de uma ação declaratória com a finalidade de reconhecimento e declaração da existência da relação de paternidade socioafetiva entre o suposto pai e o filho, a fim de que possa ser reconhecida a filiação socioafetiva e, assim, assegurar o direito de herança.
Todavia, trará muito mais tranquilidade à família se esse reconhecimento ocorrer ainda em vida, tanto pelo procedimento extrajudicial, como pela via judicial ou, ainda, por meio de um testamento.
De todos os ângulos que possam ser analisados, podemos verificar que a antecipação e o planejamento familiar (que também é um planejamento sucessório e patrimonial) são, sempre, a melhor solução para todos.
Vanessa Chincoli é advogada e docente, mestre em Direito com ênfase em planejamento patrimonial e sucessório, e direito de família. É integrante do Raul Bergesch Advogados, em Porto Alegre/RS.
[1] Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
[2] Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
[3] O reconhecimento voluntário de paternidade ou maternidade socioafetiva pode ser feito pela via extrajudicial (no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais) quando se tratar de pessoas acima de 12 anos, ou seja, pode ser feito extrajudicialmente, em cartório de registro civil. Nesse caso, é necessário atender aos requisitos constantes no Provimento 63 e 83 do CNJ. Para o reconhecimento perante o Registro Civil, são necessários os documentos e requisitos: a) documento de identidade com foto do requerente; b) certidão de nascimento atualizada do filho; c) termo assinado pelo filho maior de 12 anos e pelos pais biológicos; d) diferença de pelo menos 16 anos entre filho e requerente; e) análise do cartório de registro civil para prosseguir com o ato; f) e nem irmãos nem ascendentes podem ter filiação socioafetiva reconhecida entre si.
[4] A redação do art. 1.829 do Código Civil é amplamente criticada por ser de difícil compreensão. Ademais, há um erro no artigo: onde consta “art. 1.640, parágrafo único” deveria estar escrito “art. 1.641 do Código Civil”. Uma vez que é o art. 1641 que dispõe acerca das hipóteses de incidência do regime da separação obrigatória de bens, conforme vejamos:
Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:
I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.344, de 2010)
III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
[5] Sendo esse, justamente, o teor do Enunciado nº 256 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.”
[6] STJ. 3ª Turma. REsp 1.500.999-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 12/4/2016, Info 581.
Minha mãe viveu 52 anos com meu padastro eles tiveram 2 filhos…Minha mãe teve 4 filhos…2 falecidos…Ele comprou casa nome dele.. Ela minha mãe faleceu…Eu tenho direito herança???
Olá Renato. A sua situação é bastante complexa e exige a análise de diversos fatores, como momento da aquisição do imóvel, reconhecimento de união estável entre sua mãe e seu padrasto etc. Recomendamos que você procure um advogado especialista no assunto.
Se durante o.inventato, (não foi feita a partilha ainda) a madrasta que teria direito a 50% vem a falecer, a filha dela no caso a enteada recebe o valor destinado a madrasta no testamento ?
Boa noite.O Enteado adulto e casado ganhou o direito de filiação sócio afetiva com o padrasto, para receber a herança ele precisa ter o sobrenome do padrasto em sua certidão de nascimento?
Não. O sobrenome do padrasto não precisa constar da certidão de nascimento, mas necessário verificar como se deu esse reconhecimento da socioafetividade de maneira inequívoca. Se houver dúvidas sobre esse reconhecimento, talvez seja necessária uma medida judicial.
Sou casada com separação total de bens. Eu e meu esposo temos 2 filhos e meu esposo tem uma filha do antigo relacionamento. Eu posso fazer um testamento destinando todos os meus bens e heranças apenas para meus filhos, excluindo meu esposo? já que nosso regime de casamento é de separação total de bens?