Por Ana Luiza Ribeiro Naback Salgado
Sob o ponto de vista do planejamento patrimonial e sucessório do casal, um dos primeiros passos é a escolha do regime de bens que melhor atenda aos anseios daqueles que irão formalizar a vida conjunta através do casamento ou instituição de união estável.
A partir de 1977, a lei estipulou que o regime de bens que vigora no silêncio dos nubentes é o da comunhão parcial, no qual, em regra, há apenas o compartilhamento entre os cônjuges dos bens adquiridos na constância do casamento, ressalvadas as hipóteses legais de incomunicabilidade.
Caso haja interesse por qualquer outro regime disponível, ou mesmo a mistura das regras de um ou outro regime (regime misto), antes da celebração do casamento deve ser lavrado e registrado em cartório um pacto antenupcial ou, se união estável, contrato de convivência. Ainda, é preciso lembrar que para algumas pessoas a escolha do regime de bens é tolhida pela lei, a qual impõe seja a vida a dois conduzida pelo regime da separação legal (ou obrigatória). São, em suma, as pessoas maiores de 70 anos e as que dependem de autorização para casar-se.
Não se pretende com o presente artigo fazer uma exposição teórica acerca dos regimes de bens existentes, mas sim uma análise prática de como é preciso ter cuidado – e corretamente planejar – para que a vontade de hoje produza iguais efeitos mesmo após a morte.
Para tanto, tenha-se em mente a seguinte situação: “A” possui vários bens e os descendentes “D” e “C”. Em dado momento da vida, “A” encontra “G” e resolve contrair núpcias. No entanto, “A” não deseja compartilhar com “G”, seja em vida (eventual divórcio) ou em morte (sucessão), o patrimônio que acumulou antes do casamento.
Sendo assim, como a vontade de “A” pode ser implementada?
Pois bem. Se o planejamento se limitar isoladamente à escolha do regime de bens, a vontade de “A” pode vir a ser frustrada caso o matrimônio perdure até sua morte.
Veja o porquê:
Direcionando o pensamento para a partilha em vida (leia-se, divórcio), “G” tão somente terá acesso ao patrimônio que “A” acumulou anteriormente se o regime de bens adotado for o da comunhão universal, mediante a celebração de pacto antenupcial. Por quaisquer outros regimes, eventual partilha decorrente do rompimento em vida do vínculo conjugal não englobará esse patrimônio anterior de “A”.
Ainda, a mesma lógica se aplica se superveniente a morte de “A”, na medida em que “G” terá acesso à meação (no caso da comunhão universal) sobre a integralidade dos bens, recebendo metade de tudo aquilo que “A” possuía.
Logo, sob o regime da comunhão universal, os bens particulares de “A” serão compartilhados com “G” pelo instituto da meação, seja em vida ou após a morte. Sua vontade, nesses termos, não será atendida.
Se “A” e “G” se casarem pelo regime da comunhão parcial de bens, o patrimônio anterior (particular) de “A” não entrará na meação que pode vir a ser percebida por “G”. Nesse caso, por morte ou divórcio, “G” terá direito à meação apenas dos bens adquiridos na constância do casamento.
Contudo, quanto ao aspecto sucessório, por força da previsão dos arts. 1.829, inciso I e 1.832, ambos do Código Civil, em relação aos bens anteriores de “A”, “G” herdará em concorrência com os herdeiros “D” e “E”, em igual proporção. Assim, “G” receberá a terça parte do patrimônio particular de “A”, o que permite concluir que, pela comunhão parcial de bens, a vontade de “A” em não partilhar com “G” seu patrimônio antecedente só será parcialmente respeitada na hipótese de divórcio. Uma vez sobrevindo o falecimento de “A”, ocorrerá a transferência de 1/3 desse patrimônio particular a “G”.
Da mesma forma o integral atendimento à vontade de “A” não se verificará se ambos se casarem sob o regime da participação final nos aquestos. Este regime, conforme o art. 1.672 do Código Civil, prevê que cada cônjuge possuirá patrimônio próprio e lhe caberá, à época da dissolução da sociedade conjugal, direito à metade dos bens adquiridos pelo casal, a título oneroso, na constância do casamento. Ato contínuo, o art. 1.673 considera patrimônio próprio os bens que cada cônjuge possuía ao casar (a exemplo do patrimônio que “A” quer resguardar) mais os que cada um adquirir por si (ou seja, isoladamente e não em nome do casal), a qualquer título, na vigência da sociedade conjugal.
Esse regime é vantajoso para uma partilha decorrente de divórcio, mas tal vantagem desaparece a partir da morte do cônjuge “A” pelo mesmo motivo elencado quando da análise do regime da comunhão parcial: os bens particulares, no silêncio do art. 1.829, I, serão sucedidos pelo cônjuge sobrevivente em concorrência com os herdeiros.
Portanto, na participação final dos aquestos, “G” herdará 1/3 de tudo o que possuir natureza de bem particular de “A”, inclusive os anteriores ao casamento deles, não restando respeitada a vontade inicial de não compartilhamento.
A análise prossegue para “A” e “G” casados pelo regime da separação convencional de bens. Sendo esse o regime eleito mediante lavratura de pacto antenupcial, não haverá divisão de bens em vida (divórcio), porque estes, em tese, pertencem a cada cônjuge de forma isolada, independentemente de terem sido adquiridos antes ou durante a vigência do vínculo matrimonial.
Todavia, sobrevindo a morte de “A”, como o art. 1.829, I silencia sobre a existência de vedação sucessória do cônjuge sobrevivente e a jurisprudência de hoje ratifica a lei nesse sentido (REsp 1382170/SP), certo é que sobre a integralidade do patrimônio (lembre-se que não haverá meação e onde não há meação há sucessão) “G” concorrerá com os descendentes “D” e “E” em igual proporção, ficando então com 1/3 do total (bens antecedentes e bens adquiridos na constância do casamento).
Logo, mais uma vez, a vontade de “A” em não partilhar os bens anteriores com “G” não será respeitada no cenário pós-morte.
Por fim, resta a avaliação a partir do casamento de “A” e “G” sob o regime da separação obrigatória (legal) de bens. Consoante o art. 1.641 do Código Civil, impera obrigatoriamente o regime da separação de bens, tornando desnecessário o pacto antenupcial, se um ou ambos os cônjuges forem septuagenários (mais de 70 anos) ou se dependerem de suprimento judicial para se casarem. Assim, uma vez preenchido qualquer desses requisitos, a faculdade de escolha do regime de bens é tolhida.
Pela literalidade da lei, na separação legal não há compartilhamento de bens em vida ou após a morte de um dos cônjuges.
Acontece que a jurisprudência, já há um bom tempo, vem flexibilizando esse entendimento, especialmente com relação aos bens adquiridos na constância do vínculo, admitindo a partilha destes à semelhança do que ocorre na comunhão parcial, se demonstrado o esforço comum na aquisição. É do caso da Súmula 377 do STF e, também, de entendimentos modernos do STJ, os quais exigem a demonstração do esforço comum.
Entretanto, no tocante aos bens anteriores que “A” possuía, há expressa vedação legal à repartição, inclusive no contexto sucessório. O art. 1.829, inciso I, do Código Civil categoricamente anuncia que não haverá meação e sequer sucessão do cônjuge sobrevivente em relação aos bens particulares (anteriores) quando o casamento for regido pelo regime da separação obrigatória de bens.
Em outras palavras, o único regime de bens capaz de tutelar a vontade de “A” em vida e pós-morte para o não compartilhamento com “G” do patrimônio que já possuía antes do casamento é o de separação legal, com a ressalva de que, em regra, para que vija sua tutela, é imprescindível o preenchimento dos requisitos do art. 1.641 afetos à idade ou à capacidade de consentimento.
É dizer, portanto, que embora esse seja o regime de bens mais adequado à satisfação das pretensões do nubente, ele não é um regime elegível (até o momento) via celebração de pacto antenupcial.
Vencida a exposição sobre os regimes e suas projeções no âmbito sucessório, remanesce o anseio pela resposta sobre quais são os meios a lei civil disponibiliza caso não seja possível casar “A” e “G” pelo regime da separação legal.
Na vigência de regime diverso, o patrimônio anterior de “A” deve ser protegido do compartilhamento futuro com “G” mediante a conjugação com outros instrumentos de planejamento sucessório, tais como: doação desses bens com reserva de usufruto ou realização de partilha em vida (o momento indicado é antes da celebração do casamento), a elaboração de testamento com o cuidado de inserir a transferência desses bens na parte disponível da herança, bem como outras possibilidades a serem exploradas no âmbito do direito societário.
Com isso, demonstra-se tanto a complexidade quanto a multidisciplinariedade que cuidadosamente devem ser observadas na realização de um planejamento sucessório, não sendo apropriado adjetivá-lo como uma tarefa “simples” por mais que assim aparente ser.
Ana Luiza Ribeiro Naback Salgado é advogada pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, e coordenadora geral cível na ARM | Mentoria Jurídica em Belo Horizonte/MG.