“Sem humildade e coragem não há amor. Essas duas qualidades são exigidas, em escalas enormes e contínuas, quando se ingressa numa terra inexplorada e não mapeada. E é a esse território que o amor conduz ao se instalar entre dois ou mais seres humanos”. Amores Líquidos, Zygmunt Bauman.
As duas características acima citadas pelo sociólogo – humildade e coragem, no âmbito das relações sentimentais, são de extrema relevância. Considerando que existe uma parcela da sociedade que privada de relacionamento, pelo culto ao sucesso individual, ao amor próprio (sem amor ao próximo), e ao egoísmo, resta cada vez mais escasso os olhares humanizados às interações sociais no campo afetivo.
Isso tudo somente considerando o campo afetivo, onde casais apaixonados se casam para dar longevidade e sacramentar o amor. Mas o jovem casal, inebriado por esse nobre sentimento, esquece que esse passo – apesar de grande e afeito à natureza humana – precisa se alinhar não só em relação às suas carências e projeções no campo amoroso, mas sobretudo, também, no campo patrimonial.
Afinal, o casamento, visto como ato jurídico, pode ser entendido como contrato, detentor de direitos e obrigações, e que possui efeitos muito concretos no campo patrimonial, que podem e devem ser discutidos pelo casal apaixonado, evitando uma morosa e impactante discussão judicial sobre os haveres de cada um, ao término da relação, como o adiante relatado.
Em recente decisão, com votos substanciosos e divergentes, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que as contribuições dadas por um dos cônjuges a plano de previdência complementar privada, pagas ao Bradesco Vida e Previdência – VGBL, são partilhadas quando do término do vínculo conjugal. (Recurso Especial 1.593.026)
Vertendo em outra linguagem: o casal vivia em união estável por 13 anos, sendo que um deles possuía um plano Vida Gerador de Benefícios Livres (VGBL), que é visto como um seguro de vida recebível em vida. Mensalmente, o cônjuge/segurado aportava uma parcela de sua renda, com o intuito futuro de obter uma renda adicional à aposentadoria, e com isso, evitar uma queda brusca em seu padrão de vida. Como o valor depositado tinha origem em seu salário, em sua interpretação, não seria crível a partilha do montante após o término da relação.
Duas foram, basicamente, as linhas de raciocínio que embasaram seu ponto de vista:
- A previdência privada, de caráter complementar à previdência social, é baseada na constituição de reservas que garantam o benefício contratado – art. 202 da Constituição Federal; e
- No regime da comunhão parcial de bens, excluem-se da comunhão entre o casal as pensões, meios-soldo, montepios e outras rendas semelhantes – art. 1.659, VII, Código Civil.
No item (1), observa-se que há um cunho pessoal na contribuição. Sabendo que, em dado momento, o ser humano não é mais capaz de produzir como outrora, seja por incapacidade, acidente ou aposentadoria, existe uma busca por renda auxiliar, digna, que não tolha por completo as necessidades básicas, como acontece, infelizmente, com a grande maioria de dependentes dos rendimentos oriundos do INSS.
Já no item (2), resta claro que a pensão – e aqui, pensão é vista como a renda com origem em previdência privada – também não se comunica com os bens do casal. Por isso que o próprio artigo usa “e outras rendas semelhantes”.
Mas não foi esse o entendimento do STJ. Para a Corte Superior, em voto de desempate, os valores depositados em planos de previdência complementar aberta [guarde essa expressão] equiparam-se a investimentos financeiros como outro qualquer, tendo nítida natureza de aplicação financeira.
Nos dizeres do voto de Minerva: “É, inegavelmente, um investimento voltado ao futuro, que visa sim trazer tranquilidade ao investidor pela capitalização do montante vertido com os rendimentos e demais vantagens oriundas da aplicação financeira”.
E arremata a comunhão no seguinte trecho: “Assim, com ou sem resgate, as reservas financeiras aportadas ao VGBL durante o relacionamento dos companheiros devem ser partilhadas de acordo com as regras legais aplicáveis ao regime de bens (comunhão parcial), assim como o seriam se tais valores tivessem sido depositados em outras modalidades de aplicação financeira”.
Note que o Ministro, em seu voto, usou o termo previdência complementar aberta, mas qual o significado da expressão? O judiciário pacificou o entendimento que, há basicamente dois tipos de previdência complementar privada: a) a aberta ao público, citada no presente artigo, à qual qualquer pessoa interessada pode ingressar com seus recursos, e é comumente oferecida por instituições financeiras e seguradoras, como Itaú, Bradesco, Icatu Seguros e tantas outras, e; b) fechadas, oferecidas ao colaborador em âmbito privado ou público, sem a possibilidade de ingresso de outras pessoas que não façam parte da instituição, ou seja, de caráter totalmente individual e personalíssimo.
Sobre a previdência complementar de cunho fechado, o mesmo STJ já se posicionou no sentido os valores creditados por quem opta em contribuir não se comunicam – não se dividem – ao outro cônjuge, quando da separação.
Veja o seguinte julgado:
“4- A previdência privada fechada, por sua vez, é bem incomunicável e insuscetível de partilha por ocasião do divórcio, tendo em vista a sua natureza personalíssima, eis que instituída mediante planos de benefícios de natureza previdenciária apenas aos empregados de uma
empresa ou grupo de empresas aos quais os empregados estão atrelados, sem se confundir, contudo, com a relação laboral e o respectivo contrato de trabalho. Precedente.” (Recurso Especial 1651292, 19/05/2020).
Em resumo, o Superior Tribunal de Justiça possui o seguinte entendimento consolidado: quando se tratar de plano de previdência privada aberta, os valores depositados são considerados investimento financeiro como outro qualquer, logo, sujeitos à partilha, e quando for caso de previdência privada fechada, por ter característica personalíssima ao indivíduo, não há divisão ao casal recém separado.
É notório que o casamento alcança efeitos relevantes no patrimônio do casal, e assim como as pretensões sentimentais, devem ser assunto de suma importância a ser considerado. Na esmagadora maioria dos casos, um dos consortes percebe verbas maiores que o outro, que de modo algum servem como desculpas ao diálogo. Um bom começo é expor os rendimentos mensais de cada um antes da união, para posterior divisão de gastos em comum do casal (aluguel, prestação do carro, internet etc.). Feito isso, proporcionalmente, cada um contribui, de acordo com seu rendimento.
Em um mundo de relações líquidas, a solidez está na coragem de se dizer a verdade, e na humildade em admitir que não se trata mais de uma unidade, mas de uma união. União de esforços, de afeto e de patrimônio.
Artur Francisco da Silva é advogado do departamento de wealth planning e tax do Battella, Lasmar & Silva Advogados.
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parabéns pelo artigo – A decisão do STJ manteve o entendimento anterior de que DURANTE O PERÍODO DE ARRECADAÇÃO a VGBL é tida como aplicação financeira….em suma, nada mudou na jurisprudência!
o Entendimento do STJ não mudou ! A jurisprudência consolidada já considerava que VGBL/PGBL em PERÍODO DE ARRECADAÇÃO é tida como aplicação financeira!
Ok, mas quando a pessoa nunca teve a oportunidade de ter uma previdência complementar fechada, como fica? Ela teve que fazer uma aberta justamente porque nenhum empregador dele proporcionava uma fechada, além do mais nunca sacou nada, justamente pensando na aposentadoria. Com o fica a situação? É justo dividir e “empobrecer no final da vida?”
Justo pode não ser, mas é a lei. Mas veja que essa partilha se aplica às contribuições feitas e rendimentos creditados durante o casamento, tal como um fundo de investimento qualquer e que também deve ser partilhado no divórcio. Contribuições feitas antes do casamento não entram na partilha.