Por Ivone Zeger
Se você está descontente, siga o conselho básico: mude tudo na sua vida. Mas se for para mudar o nome, pense duas vezes!
O rapaz sai do Rio rumo a Belém do Pará e perde a carteira de identidade na viagem. Chegando a seu destino, “tira” outro RG – Registro Geral – apresentando a certidão de nascimento, para não ficar sem os documentos.
Uma senhora mora no Espírito Santo, vai visitar os netos em São Paulo; de férias, percebe que seus documentos estão um tanto antigos: vai ao Poupatempo, tira documentos novos. Em qualquer lugar, inclusive bem longe de casa, e a qualquer tempo, pode-se providenciar uma nova carteira de identidade.
O que poderia ser um aspecto positivo de praticidade torna-se falho em função da insegurança que gera. Sendo assim, o fulano, que se diz dono de empresa e é estelionatário, também pode tirar novos documentos: vira João Sem Braço em algum rincão distante do país, se safa da cadeia, e continua sua saga. Do ladrão pé de chinelo ao traficante de drogas, qualquer um pode ter vários RGs à mão, inclusive com nomes e/ou números diferentes. O alarde foi dado recentemente pela imprensa paulista, mas esse tipo de crime não é tão desconhecido. Em 2003, por exemplo, um idoso goiano vinha recebendo 16 pensões do INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social – graças a essa “maracutaia”.
Enquanto isso, porque a lei é rigorosa quando a questão é mudança de nomes, gente de boa fé pode levar quase a vida toda para conseguir mudar seu nome. À companheira em união estável que recorre à justiça para acrescentar o sobrenome do companheiro, por exemplo, a possibilidade lhe é negada se não houver provas da união; transexuais – pessoas que se submeteram a tratamento hormonal ou cirúrgico e têm características físicas do sexo oposto – esperavam por décadas por uma alteração na Lei de Registros Públicos, Lei nº 6.015/73, para que pudessem trocar sem tantos obstáculos os nomes em seus documentos pelo “nome social”, ou seja, pelo nome com o qual são chamados.
Ora, não ter um nome é algo impensável. Tê-lo é um direito garantido pela Constituição Federal. Na verdade, pais não podem deixar seus filhos sem nome: é inconstitucional.
E há o “patronímico” – palavra de origem grega que significa “tirado do nome do pai” –, ou mais popularmente chamado de sobrenome. Assim, o nome próprio acrescido de sobrenomes, normalmente um sobrenome do pai e outro da mãe, constroem – juridicamente e psicologicamente – a identidade da criança, o nome que ela deverá zelar, honrar e que a identifica perante o mundo. Os sobrenomes carregam as histórias familiares, a tradição. Mais do que isso, os nomes, e especialmente o patronímico, impõem deveres familiares e também ditam os direitos.
Nomes causam polêmicas históricas e nos tribunais. Por exemplo, as discussões de historiadores em torno da queima de documentos registrais de ex-escravos empreendida por Rui Barbosa, em 1889, quando era Ministro da Fazenda. Alguns dizem que a queima se deu para terminar de vez com os pedidos de indenização por parte dos ex-donos de escravos, que se viram prejudicados com a abolição da escravatura. Outros historiadores dizem que Rui Barbosa quis “apagar” da história do Brasil o episódio vergonhoso da escravidão. Seja qual for a hipótese verdadeira, o fato é que nem sempre é possível ao afrodescendente brasileiro saber com precisão quem foram seus ancestrais. Tampouco podem saber seus nomes verdadeiros, uma vez que quando aqui chegavam, os africanos tinham seus nomes substituídos por outros, de origem portuguesa.
Bem, cada caso é um caso. Vamos primeiramente falar da questão da união estável e a necessidade de prová-la para poder acrescentar o sobrenome do companheiro. Recentemente, foi essa a decisão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Um casal em união estável requereu a alteração para incluir patronímico de família ao sobrenome da companheira. A alegação foi a de que viviam em união estável desde 2007, já tinham um filho, mas que não podiam realizar o casamento civil, pois existiam pendências de partilha de casamento anterior. Essa regra passou a vigorar a partir do Código Civil de 2002. O inciso III do artigo 1.523 diz que não deve se casar “o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal”. Mas essa justificativa não bastou. Por quê?
A relatora e ministra Nancy Andrighi lembrou que “a adoção do sobrenome do companheiro, na união estável, não pode simplesmente decorrer de mero pedido das partes, sem exigência de qualquer prova bastante dessa união, enquanto no casamento a adoção do sobrenome do cônjuge é precedida de todo o procedimento de habilitação e revestida de inúmeras formalidades”. E mais, ressaltou que “a cautela se justifica pela importância do registro público para as relações sociais”.
Quanto aos transexuais, a situação é complexa. A lei permanece cautelosa em alterar nome e gênero, e de novo, não é à toa. A situação mais utilizada para exemplificar os problemas advindos dessa mudança é o caso de transexual – por exemplo, um homem que se tornou mulher –, alterar os documentos e casar-se com outro homem sem informar sua real condição. Caso o marido venha a saber do seu passado, poderá, inclusive, anular o casamento.
A alteração proposta à Lei de Registros Públicos que favorece os transexuais tem como objetivo livrá-los não só do embaraço de viver com um nome que nada tem a ver com sua realidade psicossocial, como também evitar problemas legais. E quanto aos bandidos, que trocam de nome quando querem? Para além de ser caso de polícia, o governo espera dificultar as falsificações por meio do RIC – Registro de Identidade Civil – que prevê o uso de um cartão com chip, marca d’água e outros itens de segurança. O novo meio de identificação deverá ser implantado paulatinamente, ao longo de nove anos. Para a segurança dos cidadãos e a garantia dos recursos do INSS… tomara que funcione!
Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão, doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires, Argentina, e membro efetivo da Comissão de Direito de Família da OAB/SP, do Instituto Brasileiro de Direito de Famíia (IBDFAM). É autora dos livros “Herança: Perguntas e Respostas”, “Família: Perguntas e Respostas” e “Direito LGBTI: Perguntas e Respostas.