Por Ana Luiza Ribeiro Naback Salgado
Assunto relevante, a responsabilidade de um cônjuge por dívida do outro é tema de discussão e, não raro, de interpretação equivocada, o que pode levar a surpresas desagradáveis. Nosso senso comum pode nos levar a acreditar que dívida de uma pessoa não pode passar desse alguém para atingir bens do cônjuge ou companheiro. Mas será isso mesmo?
No julgamento do Recurso Especial nº 1.869.720-DF pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) instalou-se relevante discussão acerca da possibilidade de constrição de valores nas contas bancárias do cônjuge que não participou da ação de cobrança no qual o outro cônjuge figurou como réu.
A controvérsia levou em conta o fato de que o casal adotara o regime de comunhão parcial de bens e, por força das disposições do Código Civil, haver presunção de solidariedade entre ambos.
No caso, foi movida contra a esposa ação de cobrança, tendo sido obtida decisão favorável ao credor. Depois esgotados todos os meios legítimos de satisfação da dívida em procedimento de execução sem qualquer resultado positivo, credor solicitou judicialmente o bloqueio nas contas do marido da executada, na medida em que eram casados sob o regime da comunhão parcial de bens. Segundo o credor, haveria indícios de movimentação financeira pela executada na conta do cônjuge varão que não integrava a lide.
Em primeira e segunda instância a pretensão do credor/exequente foi indeferida, sob o argumento de que o marido não participara do processo de conhecimento (cobrança) e que o simples fato de ser casado com a executada em regime de comunhão parcial não o tornava solidário para com as obrigações contraídas e reconhecidas em sentença. Alegou-se que eventual deferimento de pedido nesse sentido implicaria a violação das normas atinentes ao devido processo legal, como contraditório e ampla defesa.
Irresignado com o resultado negativo, o credor/exequente recorreu ao STJ alegando a violação do art. 1.658 do Código Civil acerca da comunhão dos bens adquiridos na constância do casamento e ponderou, fundamentadamente, que a comunhão entre o casal se estende tanto aos haveres (bens) como aos deveres (obrigações).
Uma vez perante o STJ, na visão da Ministra Nancy Andrighi exposta com fundamentos muito relevantes, o recurso especial merecia conhecimento e provimento, alinhavando-se o direito material ao direito processual no sentido de que o deferimento do pedido do exequente não representaria, na hipótese, situação alienígena. A seu ver, exigir do credor a prova de que a movimentação bancária na conta do cônjuge da executada seria a esta benéfica seria exigir que o credor produzisse o que se convencionou chamar de “prova diabólica”, na medida em que sua obtenção é impossível pelos meios lícitos admitidos em virtude do sigilo (bancário) inerente à espécie.
Segundo a Ministra Nancy Andrighi, cumpriria então ao marido afetado pela penhora apresentar, mediante embargos de terceiros, suas razões para afastar a constrição, alegando, por exemplo, o fato de os valores depositados em conta bancária seriam relativos aos seus proventos, ou decorrentes de sub-rogação de bem particular ou afetados por cláusula de impenhorabilidade ou incomunicabilidade, o que afastaria a comunhão inicialmente presumida.
Com isso, restariam preservados tanto o aspecto material referente à comunhão parcial de bens, como o aspecto processual e o respeito ao devido processo legal e suas nuances.
Em contraponto, na visão do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, dúvidas não remanescem no sentido de que a dívida adquirida na constância do casamento em benefício da unidade familiar tenha o condão de ensejar o acionamento de ambos os cônjuges a fim de adimplir a obrigação com patrimônio amealhado durante o vínculo matrimonial ou mesmo com patrimônio particular quando comprovado o proveito pelo dono desse referido bem (art. 1.663, § 1º, CC).
Sob o seu ponto de vista, o direito material sobre a comunhão também das responsabilidades entre os cônjuges deve ser aplicado no direito processual com respeito às regras dessa natureza, não ficando superada a necessidade, no caso concreto, da participação do cônjuge no processo desde a fase de conhecimento.
Impor a quem sequer participou da lide a saga processual de comprovar, através de embargos de terceiros, que seus ativos bancários bloqueados não entram na sistemática da comunhão de bens é ônus deveras gravoso, não passível de conivência pelo Judiciário.
Por esse motivo, a 3ª Turma do STJ, em maioria, negou provimento ao recurso especial, confirmando a impossibilidade de o patrimônio do cônjuge que não participou do processo vir a ser afetado para a satisfação da dívida.
Essa discussão no STJ, embora tenha sido resolvida no âmbito do direito processual, suscita importante atenção referente ao regime de comunhão parcial de bens, notadamente quanto à possibilidade real de compartilhamento do ônus e do bônus que possa advir da gestão patrimonial da unidade familiar.
Vale a reflexão sobre a parte do juramento que fala “na riqueza e na pobreza”, na medida em que não só os bens adquiridos na constância do vínculo podem vir a ser afetados por dívida do casal, como também o patrimônio particular de cada um (inicialmente incomunicáveis), nos termos da previsão dos arts. 1.643, 1.644 e 1.663, § 1º do Código Civil, que dispõem:
Art. 1.643. Podem os cônjuges, independentemente de autorização um do outro: I – comprar, ainda a crédito, as coisas necessárias à economia doméstica; II – obter, por empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas possa exigir.
Art. 1.644. As dívidas contraídas para os fins do artigo antecedente obrigam solidariamente ambos os cônjuges.
Art. 1.663. A administração do patrimônio comum compete a qualquer dos cônjuges. § 1º As dívidas contraídas no exercício da administração obrigam os bens comuns e particulares do cônjuge que os administra, e os do outro na razão do proveito que houver auferido. (…).
Fica, assim, o alerta de que a decisão do STJ aqui comentada não pode ser considerada como posicionamento pacificado da Corte nesse sentido.
Além de o resultado ter sido obtido por maioria, o bem fundamentado voto vencido da Min. Nancy Andrighi trouxe à tona decisão anterior do próprio STJ que admitiu o redirecionamento de execução a pessoa que não constava no contrato ora executado (Resp 1.472.316/SP). Em suas palavras: “eventual evolução para admitir não apenas o redirecionamento da execução, mas também a imediata constrição de bens não está vedada pelo referido julgado (…)”.
Some-se a isso, o fato de ainda não existir concretamente no direito processual disciplina sobre possível incidente que promova a inserção do cônjuge na fase executória, como acontece, por exemplo, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, em que os sócios, embora não tenham participado do processo de conhecimento, podem vir a ter seu patrimônio atingido para satisfação da dívida quando preenchidos os requisitos legais aptos a autorizar a instauração desse incidente.
Portanto, a melhor maneira de proceder em casos análogos ao aqui tratado permanece à revelia jurídica, o que torna o acompanhamento dessa dinâmica jurisprudencial muito valioso para todos os que possam ser envolvidos.
Ana Luiza Ribeiro Naback Salgado é advogada pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil, e coordenadora geral cível na ARM | Mentoria Jurídica em Belo Horizonte/MG.