De tempos em tempos, ressurge o debate no judiciário sobre a responsabilização de profissionais que atuam no campo do planejamento tributário, como contadores, advogados e demais especialistas, dispostos a encontrar o melhor modo de conciliar o recolhimento correto da carga tributária, com a eficiência e comprometimento em diminuí-la, sempre dentro dos parâmetros da lei.
É o que ocorreu recentemente no STF, na ação direta de inconstitucionalidade nº 6.284, que tem por objeto tornar inválido um trecho do Código Tributário de Goiás, que permite a inclusão de contadores como devedores solidários de obrigações tributárias, quando agirem com dolo ou fraude.
Esse assunto não é inédito no STF, tendo sido debatido anteriormente na ADI nº 4.845, quando a Corte decidiu pela inconstitucionalidade de lei estadual que imponha a responsabilidade de terceiros – advogado, economista e correspondente fiscal – por infrações, de forma estranha ao Código Tributário Nacional. Em resumo, a responsabilidade tributária de terceiros vem descrita nos arts. 134 e 135 do CTN, e somente por meio de Lei Complementar poderia ser ampliado o rol das pessoas elencadas no normativo. A título de curiosidade, são elas:
Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:
I – os pais, pelos tributos devidos por seus filhos menores;
II – os tutores e curadores, pelos tributos devidos por seus tutelados ou curatelados;
III – os administradores de bens de terceiros, pelos tributos devidos por estes;
IV – o inventariante, pelos tributos devidos pelo espólio;
V – o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela massa falida ou pelo concordatário;
VI – os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício;
VII – os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas.
Parágrafo único. O disposto neste artigo só se aplica, em matéria de penalidades, às de caráter moratório.
Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I – as pessoas referidas no artigo anterior;
II – os mandatários, prepostos e empregados;
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.
No entanto, a lei goiana traz uma particularidade digna de nota: determina que a responsabilização de terceiros – o contador, no caso – poderá ocorrer somente em caso de dolo ou fraude, observado o devido processo legal, o que não foi suficiente para alterar o entendimento da Corte Suprema.
Dolo e fraude são conceitos com os mais variados matizes de interpretação dentro no direito, mas em síntese, podem ser vistos como o ato de lesar, uma ação ou omissão voltada ao prejuízo de outrem.
Nesse ponto, alega a Fazenda estadual que o art. 128, juntamente com o art. 135, ambos do Código Tributário Nacional, podem atribuir a responsabilização a uma terceira pessoa. O conteúdo dessa primeira norma é o seguinte:
Art. 128. Sem prejuízo do disposto neste capítulo, a lei pode atribuir de modo expresso a responsabilidade pelo crédito tributário a terceira pessoa, vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação, excluindo a responsabilidade do contribuinte ou atribuindo-a a este em caráter supletivo do cumprimento total ou parcial da referida obrigação.
O art. 128 é claro ao exigir lei para a imputação de responsabilidade tributária a terceiros, que o STF, corretamente, determinou que fosse Lei Complementar, e não simplesmente as de caráter estadual, como é o caso de Goiás.
Aqui temos o chamado vício de forma ao legislar, pois a lei estadual goiana não respeitou a exigência constitucional de regulação do assunto por meio de Lei Complementar.
De fato, seria muito temerário deixar ao arbítrio da Fazenda incluir quem bem lhe aprouvesse na cobrança de seu crédito. Houve um período em que essa prática era bem recorrente, sobretudo quando se tratava de execuções fiscais. No decorrer da execução, voltada à satisfação do crédito tributário, a Fazenda, ao não encontrar bens disponíveis da pessoa jurídica, se voltava contra o patrimônio de todas as pessoas que fizeram parte do quadro societário, não importando se o sócio fez parte da empresa somente no ano de 1998, e o débito era relativo a fato gerador ocorrido em 2016. Felizmente, essa praxe foi rechaçada pelos Tribunais.
E ainda sobre a lei do estado de Goiás, exige para a responsabilização dos contadores, além dos requisitos de dolo ou fraude, o devido processo legal e amplo acesso ao contraditório. Ou seja: dolo/fraude + devido processo legal + contraditório = responsabilidade tributária solidária, o que também não existe a uma análise mais acurada.
Ora, o problema aqui é respeitar o acesso ao contraditório e à ampla defesa. Sim, porque dolo e fraude são institutos conectados à má-fé, que não se presume. O agente causador precisa ter a consciência e a vontade de lesar, de causar prejuízo, e só com um processo cercado de garantias é que se poderia falar em imputação de responsabilidade.
Contudo, não é o que ocorre na esmagadora maioria dos casos. O Fisco simplesmente lança os nomes de quem “acha” que está relacionado com o débito tributário na certidão de dívida ativa, e ingressa com a execução fiscal. Resta ao executado o dissabor de se defender da cobrança que muitas vezes chega à casa dos milhões de Reais.
Mas são os profissionais que atuam no campo do planejamento tributário impunes?
Cremos que não. A diferenciação será somente em qual campo do direito terá sua responsabilidade apurada, no caso, responsabilidade civil objetiva, pois aquele que busca uma economia/dinamização em sua carga tributária, busca um resultado objetivo – justamente, a organização dos meios de arrecadação de tributos, conseguintemente, uma redução de gastos. E aquele que se propõe a tal tarefa, presume-se que haja com diligência, prudência e perícia, tamanha sua atribuição.
É o conteúdo do art. 186 do Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
É bem verdade que seria possível rebater esse raciocínio com o seguinte argumento: o planejamento tributário/fiscal é atividade-meio, e não atividade-fim, logo, imune à responsabilização.
Em contraponto, fazendo uma analogia com a atividade médica, basta uma busca rápida para se descobrir que, mesmo no campo da medicina, não é todo e qualquer procedimento cirúrgico que isenta o médico de culpa, especialmente quando se fala em cirurgia plástica, típica obrigação de resultado.
Mas voltando ao julgado proferido pelo STF, sem dúvidas é mais uma garantia aos profissionais que atuam no setor, sobretudo contadores, pois “É inconstitucional lei estadual que disciplina a responsabilidade de terceiros por infrações de forma diversa das regras gerais estabelecidas pelo Código Tributário Nacional”, mas não a salvos de responder por danos em razão de ação ou omissão regida por imprudência, negligência e imperícia causadas da seara cível, a nosso ver.
Artur Francisco da Silva é advogado do departamento de wealth planning e tax do Battella, Lasmar & Silva Advogados.