Tormentoso é o tratamento jurídico atual a respeito da procuração em causa própria, sobretudo considerando-se sua usual disciplina – pela doutrina, jurisprudência e operadores do direito – de forma indistinta ao mandato em causa própria.
A figura está prevista no Código Civil, no art. 685, com a seguinte redação:
Art. 685. Conferido o mandato com a cláusula “em causa própria”, a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais.
A procuração em causa própria é instrumento largamente utilizado no âmbito de transações imobiliárias. Por meio deste artífice, o outorgante transfere o outorgado o direito de vender/transmitir/negociar direito sobre determinado bem, podendo o outorgado, inclusive, transmitir o bem para si. Diferentemente do contrato consigo mesmo, na procuração em causa própria o outorgado age conforme seus interesses, não tendo deve de representar os interesses do outorgante.
Para melhor vislumbrar na prática sua utilização principal, tomemos o seguinte exemplo[1]:
“Podemos imaginar um negócio jurídico imobiliário pelo qual o vendedor, proprietário de um imóvel rural, necessita vender este bem, porém, há o empecilho da ausência de certificação do INCRA e georreferenciamento da área rural. Mesmo se as partes celebrarem um compromisso de compra e venda, não haveria acesso ao Registro de Imóveis por falta deste requisito da especialidade objetiva. Nesse momento, o mandato em causa própria entra em cena, para assegurar ao comprador, o qual será mandatário, plenos poderes para, em nome do mandante (vendedor), adquirir o imóvel após o cumprimento do requisito registral, sem se preocupar com nova manifestação de vontade ratificatória na escritura pública definitiva. O vendedor (mandante) celebra o contrato de compra e venda, por meio do mandato em causa própria, outorgando ao comprador (mandatário), poderes de representação perante o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, para iniciar o processo administrativo de certificação da área rural, além da possibilidade de contratar e autorizar o acesso de um engenheiro para georreferenciar a área objeto do negócio. Após a realização desses trabalhos técnicos, com a expedição dos documentos exigidos pela lei, o imóvel cumprirá sua especialização e o mandato em causa própria, cujo bojo é na verdade uma compra e venda definitiva, haja vista o preço já ter sido realizado, servirá como título aquisitivo para acessar o fólio real do Registro de Imóveis”.
Nos últimos tempos tem se ventilado o uso da procuração em causa própria – sim, com este nome mesmo – como instrumento de planejamento patrimonial. Inclusive, não é raro observar alegações de que este seria um meio eficiente para transmitir bens – sobretudo imóveis – sem pagamento de imposto tampouco sujeição à inventário.
Parte deste “sucesso” se deveria a algumas características próprias do instrumento jurídico: a procuração em causa própria é irrevogável. Ela não perde sua eficácia mesmo com o falecimento do outorgante. Adicionalmente, o outorgado não precisa prestar contas da destinação dada ao bem objeto da procuração e também pode transferir a propriedade do bem para si.
Em uma primeira análise, pelo prisma do planejamento patrimonial e sucessório, seria legítimo afirmar que a procuração em causa própria funcionaria quase como um “contrato de gaveta”, que autorizaria um eventual herdeiro outorgado transferir para si o bem objeto da procuração quando bem entendesse.
Neste ponto impende conjugar três análises: conceitual, jurisprudencial e prática.
Sem pretender digressar em questões teóricas profundas, é necessário, inicialmente, diferenciar procuração em causa própria do mandato em causa própria.
Na distinção já proposta por Pontes de Miranda, mandato corresponde à espécie de contrato de representação. Já a procuração é o instrumento de outorga de poderes.
Mandato em causa própria é o negócio jurídico bilateral pelo qual o mandante, por meio de representação, ajusta com o mandatário um negócio jurídico determinado, com a permissão da cláusula “em causa própria”, para administrar e concluir a relação jurídica negocial, em nome do mandante, porém em benefício próprio, assumindo todos os encargos, obrigações e direitos que seriam do mandante, apesar de agir em nome deste. Trata-se de negócio de natureza jurídica de representação na forma e de alienação na essência[2].
Por outro lado, a procuração em causa própria se trataria de negócio jurídico unilateral instrumento do contrato de mandato.
O mandato em causa própria é o negócio jurídico principal com condão de transmitir ao mandatário direitos efetivos sobre o objeto do mandato, servindo como título translativo da propriedade no Cartório de Registro de Imóveis. Já a procuração em causa própria, como instrumento do contrato de mandato, não sendo um negócio jurídico bilateral, não tem este mesmo condão.
Neste sentido, Carlos Roberto Gonçalves[3]:
O mandato “in rem suam” equivale à compra e venda, se contém os requisitos desta, quais sejam: res, pretium et consensus. Sendo pago o imposto de transmissão inter vivos, pode ser levado a registro como se fosse o ato definitivo, desde que também satisfaça os requisitos exigidos para o contrato a que ela se destina: outorga por instrumento público, descrição do imóvel e a quitação do preço ou a forma de pagamento.
Esse entendimento foi corroborado pelo STJ, quando proclamou que a procuração em causa própria não era instrumento hábil para a transferência da propriedade de imóvel.
Em julgamento pela 4ª Turma do REsp 1.345.170, o Ministro relator Luis Felipe Salomão decidiu que “a rigor não se transmite o direito objeto do negócio jurídico, outorga-se o poder de transferi-lo”, razão pela qual a procuração em causa própria não é equivalente a título translativo de propriedade.
No mesmo sentido, a 3ª Turma do STJ firmou entendimento no ano de 2023 decidindo que a procuração em causa própria, por si só, não tem o condão de transferir diretamente a propriedade do bem a que se refere. Para que tal transferência aconteça, um novo negócio jurídico subsequente deve ser celebrado. Até que isso aconteça, o outorgante permanece como titular dos direitos sobre o objeto da procuração.
O voto divergente neste recurso (REsp 1.962.366) nos auxilia na compreensão do mandato e da procuração.
Em verdade, se tivermos um instrumento em que se outorga poderes e neste momento há individualização das partes, do objeto, pagamento do preço e consenso das partes, verdadeiramente se tem um mandato em causa própria, título hábil à futura transferência do bem, ainda que se dê o nome de procuração em causa própria. O documento contém todos os elementos e cumpre as formalidades para transferência do bem.
Por outro lado, se algum dos elementos lhe falta, o documento é apenas uma procuração em causa própria e a transferência do bem sobre o qual a procuração versa dependerá de ulterior celebração de outro negócio jurídico.
Voltando-nos para a questão prática, sob o prisma do planejamento patrimonial e sucessório, admitamos o seguinte exemplo: um pai que deseja transmitir de forma onerosa um imóvel a um de seus filhos.
Se este pai se dirigir ao Tabelionato de Notas buscando lavrar uma procuração em causa própria, outorgando poderes ao filho em relação a este imóvel, com respectivo pagamento do preço, teremos a celebração de um negócio jurídico definitivo hábil a promover a transferência do imóvel perante o Cartório de Registro de Imóveis. O negócio jurídico é “tão definitivo” e apto a promover a transferência do imóvel que se exige pagamento do imposto sobre a transmissão do imóvel neste momento.
Neste sentido, não vislumbramos nenhuma vantagem sucessória que não seja evitar que o pai precise participar do ato de transferência efetiva perante o Cartório de Registro de Imóveis.
Por outro lado, se ao instrumento lavrado faltar-lhe alguma das condições acima mencionadas, este título não será suficiente para a transmissão do imóvel perante o Cartório de Registro. Ou seja, será necessário celebrar contrato de compra e venda
Ou seja, não se observa, em princípio, nenhuma vantagem tributária.
Consideremos ainda que fosse possível a lavratura de mandato em causa própria a título gratuito, promovendo a transferência do imóvel sem pagamento de preço por expressa previsão de gratuidade no instrumento. De igual forma, o Cartório exigirá recolhimento de ITCMD para a lavratura – dada a definitividade do negócio jurídico celebrado – com a desvantagem de não se ter utilizado cláusulas protetivas, tais como impenhorabilidade, incomunicabilidade, inalienabilidade e reversão.
Assim, ao nosso sentir, a procuração em causa própria, no âmbito de planejamento patrimonial e sucessório, é instrumento válido quando se deseja evitar que o titular do patrimônio necessite de participar efetivamente do negócio jurídico que poderá ensejar futuramente a transferência do bem, com pouco potencial a economia tributária.
[1] KIKUNAGA, Marcus. A procuração em causa própria no Registro Civil das Pessoas Naturais in Registrando o Direito. Edição nº. 25
[2] KIKUNAGA, Marcus. A procuração em causa própria no Registro Civil das Pessoas Naturais in Registrando o Direito. Edição nº. 25
[3] Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil Esquematizado. São Paulo, Saraiva, 2012, vol. 1, 2. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012.
Priscila Lucenti Estevam é contadora e advogada especializada em planejamento patrimonial e sucessório, e coautora do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos, Tributação da Economia Digital no Brasil, e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.
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O artigo da doutora Priscila Lucenti Estevam esclarece, com muita propriedade, a noção de procuração em causa própria, seu alcance e seus efeitos.
Excelente artigo!
Gostaria de trazer uma questão: A procuração em causa própria, sem recolhimento do itbi no ato, possibilitaria ao outorgado a lavratura de uma nova escritura de compra e venda com terceiros? O exemplo seria aplicado no caso de já existir uma certeza que determinado imóvel será vendido após o falecimento do outorgante. Assim, faria a venda direta e o bem seria excluído do espólio.