Por Gustavo Antonio Silva e Rafaella Suppia
Mudanças relevantes no Direito de Família e das Sucessões, com impactos no planejamento patrimonial e sucessório, podem ocorrer com a aprovação do anteprojeto de lei que atualiza diversas regras do Código Civil.
O Código Civil atual, apesar de ter sido instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, começou a ser elaborado no ano de 1968 por uma comissão de juristas coordenada pelo renomado jurista e professor Miguel Reale, tendo iniciado sua tramitação no Congresso Nacional no ano de 1975. A substituição do Código Civil de 1916 era mais do que necessária, tendo em vista a vasta gama de normas e conceitos trazidos em seu texto que estavam obsoletos, sendo certo que a codificação civil posterior supriu as lacunas existentes e atualizou o que era necessário, aplicando os seus três princípios norteadores de sociabilidade, eticidade e operabilidade da norma.
Ocorre que, apesar dos enormes avanços e da evidente qualidade técnica da legislação civil, passados mais de 20 anos de sua promulgação e mais de 50 anos do início de sua elaboração, surgiu novamente a necessidade de atualizações que reflitam os avanços da sociedade contemporânea em diversos aspectos.
Tendo em vista essa necessidade de reforma, o Senado Federal instituiu, ao final de 2023, uma comissão de juristas, presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão e com relatoria geral dos ilustres doutrinadores Flávio Tartuce e Rosa Maria Nery, para elaboração de um Anteprojeto de Lei para revisão e atualização do Código Civil, o qual foi entregue no dia 24 de abril de 2024 ao Presidente do Senado e trouxe inúmeras novidades nos mais diversos âmbitos do direito.
Resumidamente, o presente artigo propõe comentar algumas das alterações importantes propostas para as áreas de família e sucessão.
Regime de Bens
O livro de Direito de Família certamente é um dos que mais necessitava de atualizações, tanto no sentido de desburocratizar os procedimentos atinentes às relações familiares, garantindo, ainda, a segurança jurídica necessária e o respeito à autonomia privada das partes, quanto para refletir as profundas mudanças e evoluções sociais experimentadas nas últimas décadas.
As alterações propostas buscam refletir questões que já vinham se consolidando na jurisprudência dos Tribunais Pátrios e eram defendidas pela doutrina e comunidade jurídica, além de pontos importados da experiência legislativa de outros países que visam modernizar nosso códex.
Como exemplo de alteração proposta objetivando diminuir as burocracias e, consequentemente, desafogar o abarrotado Poder Judiciário, a alteração de regime de bens do casamento ou união estável, possível somente pela via judicial e motivadamente, conforme o § 2º, do artigo 1.639 do atual Código Civil, poderá ser realizada por meio de escritura pública lavrada no Tabelionato de Notas, ressalvados direitos de terceiros, a fim de se evitar possíveis fraudes.
Além disso, outra inovação importada do direito anglo-saxão e que visa privilegiar a autonomia das partes é a chamada sunset clause, ou cláusula do pôr-do-sol, numa tradução livre, consubstanciada na possibilidade de se prever no pacto antenupcial ou convivencial – na ocasião de união estável – a alteração automática do regime de bens após o transcurso de um período de tempo prefixado, sem efeitos retroativos, ressalvados os direitos de terceiros.
Nesse sentido, um casal poderia estipular que nos primeiros anos do casamento haverá normas patrimoniais mais restritivas, como a instituição do regime da separação convencional de bens, de maneira que, após o decurso de um período determinado, o regime passaria a ser mais abrangente, como com a instituição do regime da comunhão parcial ou universal de bens, por exemplo.
Sucessão e os Herdeiros Necessários
Outra alteração proposta – e que causou certa polêmica – foi referente ao rol de herdeiros necessários, pois houve a exclusão do cônjuge ou companheiro sobrevivente desse rol taxativo.
Essa mudança decorreu do fato de que a concorrência entre o cônjuge ou companheiro supérstite com os descendentes e ascendentes do autor da herança causou um aumento na litigiosidade nos inventários, que faz com que essas ações tramitem por décadas sem a necessária conclusão e a consequente partilha de bens. Essa concorrência se torna ainda mais indesejada nos casos onde o casamento ou união estável era submetida ao regime de separação convencional de bens, já que a vontade das partes ao optar por tal regime é justamente a separação das questões patrimoniais do relacionamento de um casal.
Conforme constou na seção de justificação e exposição de motivos do Anteprojeto, a mudança adveio do atendimento às demandas da sociedade civil, diante da progressiva igualdade entre homens e mulheres na família e no mercado de trabalho, bem como do fenômeno cada vez maior das famílias recompostas.
Apesar da proposta de exclusão, importante ressaltar que o cônjuge ou companheiro sobrevivente continua figurando como herdeiro legítimo de terceira classe e terá garantido o seu direito real de habitação, bem como seu direito à meação, a depender do regime de bens, correspondente à metade do patrimônio comum amealhado durante o relacionamento.
Dessa forma, não há que se falar em prejuízos aos cônjuges ou companheiros, caso as mudanças sejam aprovadas, mas sim, numa maior liberdade de autonomia das partes na disposição de seu patrimônio, sendo certo que os cônjuges e companheiros poderão ser beneficiados por meio de testamento.
Patrimônio Digital
Outro advento festejado e extremamente necessário constante do Anteprojeto é o livro de Direito Civil Digital, o qual visa regular as relações civis no ambiente digital, onipresente no cotidiano contemporâneo, diante da proliferação desenfreada da internet, smarphones e redes sociais. Nele foi prevista a definição de patrimônio digital, que é considerado como o conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencentes a pessoa ou entidade, existentes em formato digital.
Esse patrimônio incluiria dados financeiros, senhas, contas de mídia social, ativos de criptomoedas, tokens não fungíveis ou similares, milhagens aéreas, contas de games ou jogos cibernéticos, conteúdos digitais como fotos, vídeos, textos ou quaisquer outros ativos digitais, armazenados em ambiente digital.
Foi previsto que a transmissão hereditária desses dados e informações contidas em qualquer aplicação de internet pode ser regulada em testamento, sendo certo, porém, que as mensagens privadas do autor da herança difundidas ou armazenadas em ambiente virtual não podem ser acessadas por seus herdeiros, salvo expressa disposição de última vontade.
Num mundo cada vez mais conectado, onde a maioria esmagadora das pessoas possui patrimônio digital, seja com perfis nas redes sociais, e diante da existência de profissões que trabalham exclusivamente com criação de conteúdo para internet, com perfis faturando cifras milionárias com o tráfego desses conteúdos nas redes sociais, é de suma importância que haja regulamentação legal dessas relações virtuais e de como se dá a transmissão hereditária desses bens e direitos.
Por fim, as mudanças propostas pelo Anteprojeto de reforma do Código Civil apresentado ao Senado visam solidificar no texto legal as mudanças e evoluções sociais das últimas décadas, alinhando-se à posição jurisprudencial praticada, bem como à melhor doutrina e enunciados das Jornadas de Direito Civil promovidas pelo Conselho da Justiça Federal, representando verdadeiro avanço ao direito privado, aos operadores do Direito e à sociedade.
Gustavo Antonio Silva é advogado com pós-graduação em Direito em Família e Sucessões pela Escola Paulista de Direito e integrante do Lacaz Martins Pereira Neto Gurevich & Schoueri Advogados, em São Paulo.
Rafaella Suppia é advogada com pós-graduação em Direito Societário, Planejamento Patrimonial e Sucessório, e Design de Contratos pela Fundação Getúlio Vargas e coordenadora do Lacaz Martins Pereira Neto Gurevich & Schoueri Advogados, em São Paulo.