“Não é da morte que temos medo, mas de pensar nela” – Sêneca
De fato, na ótica do pensador estoico, da morte não experimentamos, pois em vida, só a idealizamos. O que não significa que, de sua ocorrência não surtam efeitos nas mais diversas áreas humanas, e como não poderia ser diferente, no campo dos tributos.
Assim como perseguimos nossa manutenção, o Estado também o faz por meio dos tributos, e não seria diferente quando deixamos de existir fisicamente nesse mundo – com o máximo respeito a todo e qualquer credo – e transmitimos o resultado do esforço em vida para os herdeiros. Com a ocorrência da morte, o Estado tem o direito-dever de cobrar o ITCMD, que é o imposto sobre transmissão causa mortis e doações.
Mas qual seria o momento em que é devido o tributo? Na data do óbito? Da abertura do inventário? Ou ainda, de sua conclusão?
A leitura do artigo 1.784 do Código Civil fornece o ponto de partida: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”. Assim, a massa patrimonial deixada pelo de cujus (falecido) se transfere de imediato, porém, para operacionalizar essa transferência, há necessidade de inventariar os bens, conferir direitos e obrigações, para só então dizer se há algum patrimônio transmissível, o que só ocorrerá ao término do processo.
Por óbvio, a autoridade fiscal não possui todos os elementos materiais que necessita para aferir a base de cálculo do ITCMD quando da abertura do inventário ou arrolamento, posto não haver ainda a relação de bens a formar a massa patrimonial que antecede a partilha, tratada como espólio.
Como cabe à Lei Complementar traçar as regras gerais em matéria de tributos, e no caso do ITCMD até hoje não houve a edição do ato normativo, ficou a cargo dos Estados a edição de leis que regessem o momento adequado ao contribuinte para a efetivação do pagamento.
Ao exemplo do Estado de São Paulo, que em sua página dedicada ao imposto, assim indica como acontece o recolhimento:
Nos casos de arrolamento ou inventário judicial, o imposto será pago até o prazo de 30 (trinta) dias após a decisão homologatória do cálculo ou do despacho que determinar seu pagamento, sendo que o prazo para o recolhimento não poderá ser superior a 180 dias da abertura da sucessão.
Se o prazo para recolhimento for superior a 180 dias da abertura da sucessão, o débito estará sujeito à taxa de juros de mora e às penalidades cabíveis, excetuando-se os casos em que houver dilação desse prazo pela autoridade judicial. (Art. 17 da Lei nº 10.705/2000)
Nos casos de transmissão causa mortis por escritura pública, o imposto será recolhido antes da lavratura da escritura. (Art. 25 da Lei nº 10.705/2000)
Em todos os casos, o valor da base de cálculo será atualizado monetariamente até a data prevista para recolhimento. (Art. 15 da Lei nº 10.705/2000)
Quando não recolhidos no prazo, os débitos ficarão sujeitos à incidência de multa e juros de mora. (Arts. 19 e 20 da Lei nº 10.705/2000)
Via de regra, estipula-se ao contribuinte o prazo de 30 dias, a contar da homologação do cálculo ou do despacho que determina o recolhimento do ITCMD, para o pagamento, com um limite de 180 dias da abertura do inventário ou arrolamento para a extinção do tributo, com exceção dos casos em que houver a extensão desse prazo concedida pelo juízo, por justo motivo.
E é claro que em muitos casos, esse prazo de 180 dias não é cumprido. Basta pensar que existem inúmeras possibilidades que podem extrapolar esse prazo, como inventários com litígio entre os herdeiros, inúmeras certidões emitidas por órgãos públicos, créditos suspensos, acordo entre credores e tantos outros. Vale lembrar que não por culpa do contribuinte, e sim pela própria máquina estatal, que assoberbada de trabalho, por vezes não consegue entregar uma prestação jurisdicional condizente com as necessidades da população.
Consequentemente, aquele que não causou a demora no processo de seu interesse acaba arcando com o ônus, com pesadas multas e juros. É o caso relatado a seguir, que felizmente, e até o momento – pois está-se falando de uma decisão liminar – o contribuinte não foi obrigado a recolher o ITCMD com a incidência dessas sanções.
No caso, quando da abertura da sucessão (falecimento do autor da herança), em 27.7.2017, não havia nenhum bem a ser transmitido, pois os únicos, quotas societárias, estavam em discussão judicial (ação anulatória proposta em 2012 e, somente, em 18 de agosto de 2021, em virtude da homologação de acordo judicial, que foi definido o valor da herança a ser transmitido.
O caso tratava de ação anulatória proposta em 2012 que discutia quotas societárias. Em 2017, um dos autores da ação faleceu, deixando seu patrimônio aos herdeiros e, como à época não havia bens a serem arrolados, não foi possível a formação da herança. Em 2021, com a extinção da ação anulatória e a transmissão dos valores para o espólio, foi possível dar continuidade ao inventário, agora com a base de cálculo pronta para o recolhimento do ITCMD.
A Fazenda Paulista pretendeu cobrar o ITCMD desde 2017, pois seria esse o exato momento em que ocorreu a transmissão dos bens (morte), acrescidos de juros e multa, pois passado os 180 dias da abertura da sucessão.
No entanto, não foi esse o entendimento dado pelo juízo da 9ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, no mandado de segurança nº 1057245-55.2021.8.26.0053. No entendimento, restou claro que o recolhimento fora do prazo legal foi atribuído por fator estranho ao contribuinte, e por lógica, como não havia o que homologar até 2021 (data em que a ação anulatória foi extinta), não seria possível ao órgão estatal cobrar o tributo retroativamente.
Como apoio ao raciocínio, trouxe ainda a Súmula 114 do STF, que assim dita: “o imposto de transmissão causa mortis não é exigível antes da homologação do cálculo”.
Ou seja, por todo e qualquer ângulo, é totalmente infundada a exigência do tributo conforme requerido pela Fazenda do estado de São Paulo. Como a exigência do imposto ocorre via declaração do contribuinte, prestada no sistema informático do órgão estatal, que lança de imediato o imposto, não há espaço para contestação: pague primeiro, e depois discuta – o que seria uma grande arbitrariedade.
Esse seria o valor cobrado com a incidência de juros e multa:
Com uma base de cálculo de R$ 4.000.000,00, tem-se um ITCMD de R$ 160.000,00, bem distante do pretendido pelo Estado, que pretensamente exige quase o dobro – R$ 296.877,54. Com isso, relembrando Sêneca, a morte pode ser um dos medos inerentes ao ser humano, mas o Estado, com sua sanha arrecadatória, pode assustar muito mais…
Artur Francisco da Silva é advogado do departamento de wealth planning e tax do Battella, Lasmar & Silva Advogados.
SAIBA MAIS SOBRE ITCMD COM A NOVA EDIÇÃO DO NOSSO PLANEJAMENTO PATRIMONIAL: