Por Emanuele Paranan Barbosa Güther
A discussão sobre relacionamentos sócioafetivos têm ganhado espaço entre especialistas e também em nossos tribunais, mas a compreensão da sua importância perante um público mais abrangente ainda carece de divulgação.
A relação socioafetiva é aquela que se pauta na afetividade, caracterizada pelo forte vínculo afetivo, especialmente falando de relações cuja paternidade ou maternidade não se estabelece pelo vínculo genético. Ou seja, trata-se de uma relação baseada exclusivamente no afeto, tal como aquela entre pai/mãe e filho(a), mas sem que haja um vínculo biológico (genético) ou mesmo jurídico (adoção).
A filiação socioafetiva se fundamenta na cláusula geral de tutela de personalidade humana, que resguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e definição da personalidade[1].
O Art. 1.593 do Código Civil prevê o parentesco natural ou civil, mas também admite que o parentesco pode ter outra origem, no caso a afetividade. A demonstração de forma pública e notória de um vínculo de afeto de uma mãe em relação ao filho, pautados pela relação de família que vivem, sem que tenham mãe e filho relação consanguínea ou jurídica (adoção).
O Supremo Tribunal Federal firmou, em julgamento repetitivo, que a paternidade socioafetiva não impede a biológica[2]: já há casos em que uma pessoa possui a paternidade biológica registrada em sua certidão de nascimento, e também a paternidade socioafetiva. Um caso recente é o da filha da cantora Kelly Key e do cantor Latino, que se chama Suzana e, e que obteve o assento do nome de Mico Freitas, seu padrasto, como seu pai socioafetivo.
No Brasil, o ato de registrar filho de terceiro como próprio configura delito contra o estado de filiação (Art. 242 do Código Penal), mais conhecida como “adoção à brasileira”. Todavia esse tipo de “adoção” produz efeitos devido ao laço de afetividade que foi criado entre pais e filhos.
Nos casos em que se busca na Justiça o reconhecimento da filiação socioafetiva post mortem, há uma busca pelo pretenso filho afetivo em face do espólio.
Propor uma ação com esse fundamento pode aparentar oportunismo, todavia, é prudente ter cautela e demonstrar provas de que a afetividade era de forma recíproca, pública e com vasto lapso temporal.
Todavia, supondo que exista um testamento do falecido e este não contemple a filiação socioafetiva do pretenso filho, seria uma prova da falta da relação pleiteada em juízo.
O Superior Tribunal de Justiça já reconheceu a paternidade socioafetiva post mortem num caso emblemático em 2016:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. PROCESSUAL CIVIL. ADOÇÃO PÓSTUMA. SOCIOAFETIVIDADE. ART. 1.593 DO CÓDIGO CIVIL. POSSIBILIDADE. ART. 42, § 6º, DO ECA. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. POSSIBILIDADE. MAGISTRADO COMO DESTINATÁRIO DAS PROVAS. CERCEAMENTO DE DEFESA. INEXISTÊNCIA.
1. A socioafetividade é contemplada pelo art. 1.593 do Código Civil, no sentido de que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem”.
2. A comprovação da inequívoca vontade do de cujus em adotar, prevista no art. 42, § 6º, do ECA, deve observar, segundo a jurisprudência desta Corte, as mesmas regras que comprovam a filiação socioafetiva, quais sejam: o tratamento do menor como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição.
3. A paternidade socioafetiva realiza a própria dignidade da pessoa humana por permitir que um indivíduo tenha reconhecido seu histórico de vida e a condição social ostentada, valorizando, além dos aspectos formais, como a regular adoção, a verdade real dos fatos.
4. A posse de estado de filho, que consiste no desfrute público e contínuo da condição de filho legítimo, restou atestada pelas instâncias ordinárias.
5. Os princípios da livre admissibilidade da prova e do livre convencimento do juiz (art. 130 do CPC) permitem ao julgador determinar as provas que entender necessárias à instrução do processo, bem como indeferir aquelas que considerar inúteis ou protelatórias.
6. Recurso especial não provido. (STJ – REsp: 1500999 RJ 2014/0066708-3, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 12/04/2016, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/04/2016)
É importante ressaltar que esse tipo de ação não deve ser visto com o intuito de obter vantagem financeira, mas para a obtenção de um direito que o indivíduo tinha por consequência da relação recíproca de afetividade que teve com aquele que via como pai ou mãe.
Do ponto de vista patrimonial e sucessório, o reconhecimento da relação socioafetiva implica no direito de o filho socioafetivo participar do inventário com os demais filhos, sejam eles adotivos ou biológicos, pois a lei assegura de proteção constitucional de igualdade entre os filhos[3].
Emanuele Paranan Barbosa Güther é advogada especializada em Direito Tributário e sócia do Güther & Paranan Advogados, em São Paulo/SP.
[1] Maria Berenice Dias, Manual de Direito das Famílias,406
[2] STF, Tema 622, RE 898.060, rel. Luiz Fux
[3] Constituição Federal, Art. 227, § 6º.