Repercussões antagônicas do STF – incidência concomitante do ITCMD e IR

Por Isabella Magalhães

Em 2025, o cenário tributário para o planejamento sucessório apresenta novos desafios e nuances, exigindo que os profissionais da área se atualizem sobre as recentes decisões e debates jurídicos.

Entre os temas mais impactantes está a discussão sobre a incidência simultânea do Imposto de Renda sobre ganho de capital (IR) e do Imposto de Transmissão Causa Mortis e de Doação (ITCMD) em doações em vida, modalidade de transmissões comuns no planejamento patrimonial consideradas como adiantamento de legítima, a fim de tornar desnecessário o inventário com relação a parcela de bens e direitos repassados antecipadamente aos herdeiros.

É, sobretudo, matéria tributária relevante e recente na ordem dos Tribunais Superiores, gerando repercussões antagônicas com potencial de afetar a forma como as famílias estruturam sua sucessão e organizam seu patrimônio.

O tema permeia acalorada discussão quanto a viabilidade legal e constitucional de uma incidência cumulativa do Imposto de Renda sobre ganho de capital (IR) e do Imposto de Transmissão Causa Mortis e de Doação (ITCMD), com divergências que se verificam, inclusive, em decisões antagônicas do próprio Supremo Tribunal Federal (STF).

Portanto, o tema deste artigo é abordar as implicações tributárias decorrentes destas controvérsias em teses do Supremo Tribunal Federal e quais são os impactos no planejamento sucessório, especialmente no que diz respeito às doações previstas no artigo 544 do Código Civil (CC). A análise das recentes decisões do STF será central para entender as alternativas viáveis e os riscos envolvidos para quem busca otimizar sua sucessão e minimizar impactos tributários.

Vamos por partes…

Pela legislação brasileira, os herdeiros ou donatários devem recolher o ITCMD devido na transmissão da herança ou doação com alíquotas de até 8% (a depender do Estado federativo), sobre o valor venal dos bens.

Em manifestações recentes da Fazenda Nacional, o entendimento é de que, além do ITCMD, deveria haver a incidência do IR de ganho de capital sobre a diferença positiva entre o valor da transferência e do valor pelo qual constava da declaração de bens do de cujus ou do doador.

Na regra geral de IR sobre a transmissão de bens e direitos, adota-se a utilização do valor da declaração do doador ou do de cujus, hipótese em que não há o que se falar sobre ganho de capital. Opcionalmente, o bem pode ser transmitido, por doação, herança ou legado, por valor de mercado, quando, conforme o art. 23 da 9.532/97, deve ser apurado e recolhido, se for o caso, o Imposto sobre a Renda sobre Ganho de Capital, sendo que o contribuinte é o doador ou o espólio.

Base legal

A base legal discutida pelos Órgãos Superiores é regida pelos seguintes dispositivos:

  • Art. 43, do Código Tributário Nacional: afere a relação do IR ao acréscimo patrimonial disponível.
  • Artigos 153, III; e 155, inciso I, da Constituição Federal: versa sobre capacidade Contributiva Constitucional.
  • Lei nº 7.713/88: determina que a doação é sujeita à apuração de ganho de capital.
  • Lei nº 9.532/97: determina que o doador pode, a seu critério, optar entre dois regimes distintos para atribuir valor ao patrimônio doado: o valor de mercado ou aquele já constante de sua declaração de bens. Em optando por realizar a transferência a valor de mercado, a diferença a maior, sujeita-se à incidência do IRPF à alíquota progressiva de 15%.

Lei 9.532, art. 23. “Na transferência de direito de propriedade por sucessão, nos casos de herança, legado ou por doação em adiantamento da legítima, os bens e direitos poderão ser avaliados a valor de mercado ou pelo valor constante da declaração de bens do de cujus ou do doador.

§ 1º Se a transferência for efetuada a valor de mercado, a diferença a maior entre esse e o valor pelo qual constavam da declaração de bens do de cujus ou do doador sujeitar-se-á à incidência de imposto de renda à alíquota de quinze por cento”.

Atenção: embora estejamos tratando de ganho de capital, a alíquota do imposto é de 15%, independentemente do valor, não se sujeitando à progressividade.

Debates nos Tribunais Superiores

No âmbito dos Tribunais Regionais e do STF há dualidade de entendimento, com uma série de julgados, tanto a favor dos contribuintes pela não incidência cumulativa de ITCMD e IR sobre eventual ganho de capital, como também a favor de incidência, conforme manifestado pela autoridade fazendária, pelo qual se torna necessário e urgente o pronunciamento para uniformização da matéria.

Recentes embates entre União e contribuintes foram levados a julgamentos superiores. A Primeira Turma do STF, quando do julgamento do ARE 1.387.761 decidiu reconhecendo a inconstitucionalidade da incidência do imposto sobre a renda sobre o ganho de capital referente à doação em adiantamento de legítima, seguindo a orientação da Suprema Corte. No entanto, mais recentemente, a Segunda Turma do STF, decidiu que não haveria bitributação.

Entenderemos em termos práticos…

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região afastou a cobrança do IR sobre o ganho de capital cumulativo ao ITCMD, com base na inconstitucionalidade do § 1º, do artigo 23 da Lei 9.532/97 que, ao impor a apuração de ganho de capital sobre uma transferência de titularidade de bens e direitos por doação acabaria infringindo a reserva de matéria constitucional do ITCMD, uma vez que a mesma “realidade econômica seria submetida à tributação por diferentes entes da federação.”

“Se o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação é calculado tomando-se por base o valor atualizado dos bens – vale dizer, valor de mercado (…) significa isso, noutros termos, que a tributação abrange o fato jurídico eleito pelo legislador ordinário da lei 9.532/97 como gerador do imposto de renda sobre ganho de capital, qual seja, a diferença a maior entre o valor de mercado e o valor de aquisição dos bens ou direitos [já está sendo considerada na base de cálculo do ITCMD]. Ocorrência de “bitributação”.

“(…) registro que a doação promove, ao cabo, acréscimo patrimonial para o donatário, sendo que tal acréscimo não se sujeita ao imposto de renda, mas ao ITCMD, em razão da distribuição constitucional de competências. Esse imposto estadual pode incidir sobre o próprio valor de mercado do bem doado, o que abarca, evidentemente, aquele ganho de capital.”

O Relator também acentuou que o texto constitucional reparte o poder de tributar entre os entes federados, de modo a impedir “que uma mesma materialidade venha a concentrar mais de uma incidência de impostos por um mesmo ente (vedação ao bis in idem) ou por entes diversos (vedação à bitributação) (…) Note-se que o ITCMD, nessas duas ocasiões, abarca a diferença entre o valor de mercado e o valor registrado nas declarações da doadora. Não poderia, assim, o imposto de renda também incidir sobre essa mesma realidade, sob pena de ferir a distribuição de competências realizada pela Constituição Federal, a pessoalidade e a capacidade contributiva e provocar vedada bitributação.”

Com este entendimento, a 1ª Turma reforçou a jurisprudência da sua Corte Especial e ratificou o Imposto de Renda para matéria de transmissões onerosas, reservando à competência exclusiva dos estados de tributar transferências patrimoniais decorrentes de matéria causa mortis e doação, de modo que o ganho de capital, no contexto de antecipação de legítima, é genuinamente visto como parte da herança transmitida, estando sujeito apenas na base de cálculo do ITCMD e não, duplicadamente, também na base de cálculo do Imposto de Renda.

No mesmo sentido, as transmissões patrimoniais gratuitas por doação não representam acréscimo patrimonial para o doador. Pelo contrário, representam decréscimo patrimonial, sem contorno de riqueza passível de ser verificada pelo doador.

Em recurso ao STF, a União alegou que o IR deve incidir mesmo com a cobrança do ITCMD, porque o primeiro se refere à “aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica”, enquanto o fato gerador do segundo é a transmissão da propriedade.

“(…) com efeito, a tributação do ganho de capital nas transferências de bens do de cujus ou do doador configura acréscimo patrimonial sujeito à incidência do imposto de renda, não se havendo cogitar de bitributação ou de invasão de competência tributária.” (eDOC 42, p.1-7)

 “(…) Interpôs, então, a União o recurso extraordinário (…) e aduziu que a hipótese de incidência do ITCMD (transmissão de propriedade) é distinta da hipótese de incidência do imposto de renda (aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica). Argumentou não haver bitributação.”

Quadro resumo das Decisões das Turmas do Supremo Tribunal Federal

Caso 1 (1ª Turma STF)   Desfecho favorável ao contribuinte, por unanimidade (RE 1439539) e (ARE 1387761)Caso 2 (2ª Turma STF)   Desfecho favorável à União, por três votos a dois (RE 1425609) e (RE 1269201)
A autora doou bens de sua herança à sua filha como adiantamento da legítima e questiona incidência cumulativa do Imposto de Renda sobre ganho de capital (IR) e do Imposto de Transmissão Causa Mortis e de Doação (ITCMD) como duas bases de cálculo apartadas.

A União demonstrou pretensão fazendária para que houvesse a incidência do tributo de IR, cuja manifestação foi interposta via recurso, uma vez que “haveria uma diferença econômica entre o valor do patrimônio doado, como constante da declaração de bens do doador e o valor atribuído por ele na transferência aos donatários, caracterizando indistintamente “acréscimo patrimonial”.   Em contrapartida, em outubro de 2024, em acórdão de relatoria do ministro Flávio Dino (AgRg no RE 1.439.539), a 1ª Turma do STF entendeu, por unanimidade, pela não incidência sobre ganho de capital em doações efetuadas em adiantamento de legítima, pois acarretaria indevida bitributação em relação ao ITCMD que já o considera, além de que, na doação, não há acréscimo patrimonial disponível para o doador.   A decisão confirmou o acórdão proferido anteriormente também pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região.    
Em caso análogo, autora contestou a constitucionalidade da cobrança do IR sobre ganhos de capital na doação, alegando bitributação.   O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) concordou com a inexigibilidade do IR sobre o ganho de capital na transmissão hereditária ou doação de bens, pois “a jurisprudência de sua Corte Especial considera que “o artigo 23, §1º, da Lei 9.532/1997 é inconstitucional”.   A União recorreu ao STF, alegando contrariedade aos artigos 153, III; e 155, inciso I, da CF/88. Afirmou que o IR deve incidir mesmo com a cobrança do ITCMD, pois o IR se aplica à aquisição de disponibilidade econômica, enquanto o ITCMD trata da transmissão da propriedade.   O Ministério Público Federal recorreu da decisão, e sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, a 2ª Turma do STF decidiu, por maioria de votos (vencidos os ministros Dias Toffoli e André Mendonça, no Recurso Extraordinário 1.425.609, ser devida a incidência de IR sobre o ganho de capital, reforçando o embate sobre a constitucionalidade do §1º, do artigo 23, da Lei 9.532/1997, que configura acréscimo patrimonial à alíquota de 15%, e que o artigo apenas define o momento da apuração do acréscimo patrimonial, sem alterar o fato gerador do IR.

Quadro Resumo dos argumentos contrários e favoráveis à incidência

Critério analisadoDiscordância quanto a incidência de IR sobre ganho de capitalDefesa pela incidência de IR sobre ganho de capital
      Competência federativaCompete aos estados tributar transferências patrimoniais decorrentes de matéria causa mortis e doação, de modo que o ganho de capital, no contexto de antecipação de legítima, é genuinamente visto como parte da herança transmitida, estando sujeito apenas ao ITCMD.O ITCMD é recolhido pelo donatário; já o IR, pelo doador. Isso porque a isenção ao donatário por ganho de capital em doação estaria garantida pela Lei nº 8.023/1990, que não foi revogada pela Lei nº 9.532/1997, lei mencionada nas fundamentações da Fazenda.
        Hipótese de BitributaçãoA incidência concomitante do IR acarreta uma indevida bitributação ao impor a apuração de ganho de capital sobre a doação, uma vez que a mesma realidade econômica seria submetida à tributação por diferentes entes federativos, acarretando vedação constitucional.Não há tributação da doação, mas da valorização do patrimônio do doador que já havia ocorrido anteriormente, mas somente foi aferido no momento da avaliação do bem realizada por opção legal do doador, fazendo com que esse acréscimo não seja jamais sujeito à tributação, já que o donatário recebe o bem valorizado.
          Fato geradorNão há acréscimo patrimonial disponível para o doador, uma vez que o doador já tinha efetiva disponibilidade jurídica do valor acrescido ao seu patrimônio antes da doação.  A cobrança do IR não configura como tributação sobre a herança ou doação, porque o primeiro se refere à “aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica”, enquanto o fato gerador do ITCMD é a transmissão da propriedade. Adicionalmente, aferir devida a cobrando do IR sobre o ganho de capital apenas estabelece o momento da tributação entendida devida, devendo, ambos os argumentos sobre o fato gerador afastar a bitributação.
  Base de cálculoHá decréscimo patrimonial do doador no ato da doação, o que afastaria o fundamento jurídico para a tributação sobre a sua renda.Tributa-se a valorização patrimonial do doador, não a herança ou doação.  

Insegurança jurídica

Independentemente da tese prevalecente, é evidente que a existência de acórdãos das duas turmas do Supremo em sentidos opostos gera uma enorme insegurança jurídica, que, inclusive, repercute nas instâncias inferiores – basta verificar, exemplificativamente, que o Tribunal Regional da 3ª Região possui recente julgado a favor do contribuinte nesta matéria (Apelação nº 5019855-82.2023.4.03.6100, Rel. Des. Fed. Nery Da Costa Junior, j. em 30/01/2025); ao passo que o Tribunal Regional da 2ª Região possui entendimento em favor do Fisco (Remessa Necessária nº 5071615-87.2023.4.02.5101, Rel. Des. Fed. William Douglas Resinente Dos Santos, j. em 14/10/2024).

Diante da importância do tema, torna-se indispensável que o STF uniformize a orientação jurisprudencial e reconheça a repercussão geral da matéria, mantendo a sua orientação una e garantindo ordem vinculante e segurança jurídica.

Assim, àqueles que pretendem organizar seu patrimônio via doações em vida devem estar atentos a essas questões até que o Supremo consolide definitivamente seu entendimento. Até lá, cautela e planejamento jurídico adequado seguem sendo essenciais, pois, ao menos por ora, atribuir um valor superior ao bem doado sem o recolhimento do imposto sobre o ganho de capital pode demonstrar aceite dos Tribunais Superiores, mas representar risco aos planejamentos patrimoniais de contribuintes.

Isabella Magalhães é advogada, mestre (LLM) em Direito dos Mercados Financeiro e de Capitais (Insper). Possui certificação CFP e pós-graduanda em Planejamento Patrimonial e Sucessório pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Atualmente, atua no segmento de Family office, integrando o time Jurídico e Compliance na Pragma Gestão de Patrimônio.

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