Por David Roberto R. Soares da Silva
São muitos milhares de brasileiros que se mudaram para o exterior nos últimos anos, pelas mais diversas razões. Passado algum tempo, vários decidem voltar ao País, retornando à condição de residente fiscal, podendo manter recursos no exterior pelas mais diversas razões.
Com a nova tributação criada pela Lei nº 14.754/2023, e válida a partir de 1º de janeiro de 2024, este artigo tem por objetivo trazer algumas reflexões sobre as implicações tributárias das novas regras àqueles que readquirem a residência fiscal no Brasil, mantendo empresa controlada no exterior, as famosas offshore.
Para fins de didática, chamaremos de empresa offshore aquela que se enquadra no Art. 5º, § 5º da Lei nº 14.754/2023, ou seja, aquela entidade controlada pelo contribuinte, ou por pessoas próximas a ele, que esteja localizada em um país ou em dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado (conhecido como paraíso fiscal), ou que apure renda passiva (juros, dividendos, ganhos de capital etc.) igual ou superior a 40%.
Até a edição da Lei nº 14.754/2023, os lucros e dividendos de empresas localizadas no exterior (offshore ou não) estavam sujeitos à tributação mensal pela tabela progressiva (Carnê-Leão), cuja alíquota poderia atingir 27,5%, devendo o imposto ser pago até o último dia útil do mês seguinte ao efetivo recebimento dos lucros ou dividendos. Se, por um lado, havia uma tributação elevada e mensal, por outro, a legislação permitia à pessoa física residente no Brasil postergar indefinidamente o recebimento desta renda, mantendo os recursos reinvestidos na empresa no exterior.
Para as empresas offshore, a Lei nº 14.754/2023 mudou radicalmente a sistemática de tributação, passando a exigir o pagamento anual do IR, à alíquota de 15%, independentemente da sua efetiva distribuição ao contribuinte. A tributação desses lucros ocorre em 31 de dezembro de cada ano, ao passo que a apuração do imposto e o seu pagamento deve ocorrer por ocasião da entrega da Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda (DAA).
A tributação do lucro da offshore (§ 5º do Art. 5º da lei) em 31 de dezembro se dá por força do que estabelece o Art. 5º da lei, senão vejamos:
Art. 5º Os lucros apurados pelas entidades controladas no exterior por pessoas físicas residentes no País, enquadradas nas hipóteses previstas neste artigo, serão tributados em 31 de dezembro de cada ano, na forma prevista no art. 2º desta Lei.
Já a apuração do IR e o seu pagamento na DAA à alíquota de 15% ocorre em decorrência do que dispõe o Art. 2º da lei, da seguinte forma:
Art. 2º A pessoa física residente no País declarará, de forma separada dos demais rendimentos e dos ganhos de capital, na Declaração de Ajuste Anual (DAA), os rendimentos do capital aplicado no exterior, nas modalidades de aplicações financeiras e de lucros e dividendos de entidades controladas.
§ 1º Os rendimentos de que trata o caput deste artigo ficarão sujeitos à incidência do Imposto sobre a Renda das Pessoas Físicas (IRPF), no ajuste anual, à alíquota de 15% (quinze por cento) sobre a parcela anual dos rendimentos, hipótese em que não será aplicada nenhuma dedução da base de cálculo.
O procedimento para apuração, conversão, cômputo e tributação na DAA está disposto no § 10 do mesmo Art. 5º da lei, que dispõe:
Art. 5º (…)
§ 10. Os lucros das controladas enquadradas nas hipóteses previstas no § 5º deste artigo serão:
I – apurados de forma individualizada, em balanço anual da controlada, direta ou indireta, no exterior, (…)
II – convertidos em moeda nacional pela cotação de fechamento da moeda estrangeira divulgada, para venda, pelo Banco Central do Brasil, para o último dia útil do mês de dezembro;
III – computados na DAA, em 31 de dezembro do ano em que forem apurados no balanço, independentemente de qualquer deliberação acerca da sua distribuição, (…), e submetidos à incidência do IRPF no respectivo período de apuração; e
IV – incluídos na DAA, na ficha de bens e direitos, como custo de aquisição de crédito de dividendo a receber da controlada, direta ou indireta, com a indicação do respectivo ano de origem.
Ou seja, para aquele que é residente fiscal no Brasil, a tributação dos lucros da offshore ocorre de forma automática em 31 de dezembro de cada ano, devendo o IRPF ser apurado e pago na DAA.
Ou seja, não há escapatória: o IRPF é devido anualmente e de forma automática desde que seja apurado lucro na offshore. Mas, ele é devido apenas por quem é residente fiscal no Brasil. Peço ao leitor que volte a ler os Arts. 2º e 5º acima transcritos e note a expressão “pessoa(s) física(s) residente(s) no País”. E não poderia ser diferente, pois quem não é residente fiscal não está sujeito ao IRPF nem deve entregar a DAA.
Pois bem, não sendo residente fiscal no Brasil, a pessoa física não deve recolher o IRPF de 15% sobre os lucros de sua offshore nos anos em que não estiver domiciliada no País.
Mas, e quando ela retornar ao Brasil? Como ficam os lucros da offshore apurados durante o período em que era não residente? Será que eles podem ser tributados em algum momento?
Como vimos, a regra para os lucros de empresas offshore é a da tributação anual e automática em 31 de dezembro de cada ano. A Lei nº 14.754/2023 estabelece apenas duas exceções a esta regra, que estão contempladas no Art. 6º da lei. Essas exceções à regra geral da tributação anual e automática determinam a tributação dos lucros no momento da efetiva distribuição desses lucros. Vejamos quais são essas duas únicas situações:
Art. 6º Serão tributados no momento da efetiva disponibilização para a pessoa física residente no País, na forma prevista no art. 2º desta Lei:
I – os lucros apurados até 31 de dezembro de 2023 pelas controladas no exterior de pessoas físicas residentes no País, enquadradas ou não nas hipóteses previstas no § 5º do art. 5º desta Lei;
II – os lucros apurados a partir de 1º de janeiro de 2024 pelas controladas no exterior de pessoas físicas residentes no País que não se enquadrarem nas hipóteses previstas no § 5º do art. 5º desta Lei.
O § 5º do Art. 5º trata das empresas offshore, objeto destes comentários. Ou seja, a regra do inciso II se aplica apenas aos lucros de empresa que não são consideradas offshore, como, por exemplo, empresas operacionais.
A redação do Art. 6º nos permite concluir que somente estão sujeitos à tributação na efetiva distribuição os seguintes lucros: (1) de qualquer empresa no exterior, offshore ou não, apurados até 31 de dezembro de 2023, e (2) de empresa não enquadrada como offshore, apurados a partir de 1º de janeiro de 2024.
Imaginemos a seguinte situação. Maria deixou o Brasil em 2022, entregando a sua Comunicação e Declaração de Saída Fiscal. Chegando no exterior, abriu uma empresa offshore, ainda em 2022, e passou a investir seus recursos financeiros por meio dessa empresa.
Fast forward.
Estamos em setembro de 2027 e Maria retorna de forma definitiva ao Brasil, devendo apresentar sua “primeira” DAA em abril de 2028 . Naquele momento, a sua offshore possui os seguintes lucros acumulados:
- Lucro de 2022: USD 50 mil
- Lucro de 2023: USD 60 mil
- Lucro de 2024: USD 100 mil
- Lucro de 2025: USD 110 mil
- Lucro de 2026: USD 115 mil
- Prejuízo de 2027: USD 30 mil
Analisando novamente os dispositivos da Lei nº 14.754/2023, teríamos o seguinte tratamento tributário para esses lucros da offshore de Maria
Ano | Valor | Momento da tributação | Base legal Lei nº 14.754/2023 |
2022 | USD 50 mil | Efetiva distribuição | Art. 6º, inciso I |
2023 | USD 60 mil | Efetiva distribuição | Art. 6º, inciso I |
2024 | USD 100 mil | Não incidência | Não há disposição legal |
2025 | USD 110 mil | Não incidência | Não há disposição legal |
2026 | USD 115 mil | Não incidência | Não há disposição legal |
2027 | (USD 30 mil) | Não há tributação | Art. 5º, § 14 |
Como vimos, a Lei nº 14.754/2023 prevê a tributação anual e automática dos lucros de offshore para pessoas físicas residentes no País. Se a pessoa não era residente fiscal em 31 de dezembro de cada ano, o que se tem é um caso de não incidência do imposto de renda, por falta de contribuinte (aspecto pessoal).
Poder-se-ia argumentar, então, que no caso dos lucros de 2024 a 2026 da offshore de Maria, eles deveriam ser tributados no momento da efetiva distribuição para Maria. Mas isso não é possível, pois, como visto, a própria Lei nº 14.754/2023 somente prevê a tributação na distribuição em caso (1) de a controlada não ser uma offshore (Art. 5º, § 5º), ou (2) de lucros apurados até 31 de dezembro de 2023. É o que ocorre com os lucros da offshore de Maria de 2022 e 2023, mas isso não se aplica aos lucros de 2024 a 2026.
Alguém ainda poderia argumentar, então, que os lucros de 2024 a 2026, que são lucros acumulados de anos anteriores, deveriam ser tributados em 31 de dezembro de 2027, depois que Maria retorna ao Brasil, com a dedução do prejuízo de 2027.
Esse argumento não se sustenta por uma razão lógica: não há previsão legal para isso, dado que o inciso III do § 10 do Art. 5º da Lei nº 14.754/2023 é claro ao dizer que os lucros serão “computados na DAA, em 31 de dezembro do ano em que forem apurados no balanço, independentemente de qualquer deliberação acerca da sua distribuição”. Ora, os lucros de 2024 a 2026 foram apurados nos balanços dos respectivos anos e não no balanço de 31 de dezembro de 2027, embora dele devam constar na rubrica de “lucros acumulados de anos anteriores” ou algo do gênero. O lucro “apurado no balanço” a que se refere o inciso III do § 10 do Art. 5º da Lei nº 14.754/2023 é aquele quantificado na “Demonstração do Resultado do Exercício”, a famosa DRE, que nada mais é do que a confrontação das receitas, custos e resultados de um dado ano.
Assim, ao que parece, estamos diante de um caso típico de falta de regra de tributação, conhecida como não incidência tributária. Ou seja, em uma análise de todo o texto da lei, não se encontra qualquer dispositivo legal que regule como devem ser tributados os lucros apurados em offshore pós-2023 quando a pessoa física gozava da condição de não residente.
Diferente seria a situação se a empresa controlada de Maria não fosse uma empresa offshore, ou seja, não estivesse localizada (em termos leigos) em um paraíso fiscal e também não apurasse renda passiva superior a 40%. Se a sua empresa fosse uma empresa operacional, sem renda passiva relevante, em um país que não fosse um paraíso fiscal, todo o lucro de 2024 a 2026 seria tributado à alíquota de 15% quando fosse efetivamente disponibilizado para Maria, caso essa disponibilização ocorresse depois que ela retornasse à condição de residente fiscal no Brasil. A única forma de evitar essa tributação seria promover a distribuição desses lucros antes de readquirir a residência fiscal em terras tupiniquins.
Importante notar, ainda, que nem mesmo a Instrução Normativa nº 2.180/2024, que regulamentou a Lei nº 14.754/2023, tratou desse assunto.
Por fim, importa dizer que essas linhas são apenas uma primeira reflexão sobre o tema, ainda muito novo para os contribuintes brasileiros. E de (ainda) pouca aplicação prática, dado que a tributação automática dos lucros das offshore somente iniciou em 1º de janeiro deste ano e terá real impacto em 2025. Todavia, ao longo dos anos, se nada for feito em termos de alteração legislativa, parece que uma janela de oportunidades se abrirá para aqueles que apurem lucros em empresas offshore na condição de não residente e depois retornem ao país.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor de Tributação das aplicações financeiras, empresas offshore e trusts no exterior (2024), Construindo o Planejamento Patrimonial e Sucessório: Análise de casos reais (2023), do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2021), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil (2020), todos publicados pela Editora B18.
EXCLUSIVIDADE EDITORA B18: O MAIS COMPLETO LIVRO SOBRE A TRIBUTAÇÃO DOS ATIVOS NO EXTERIOR, CRIADA PELA LEI Nº 14.754/2023.
Texto intrigante! Fico sempre impressionado com a sagacidade (e agilidade) de sua leitura dessa nova lei!