Por Ana Luiza Ribeiro Naback Salgado
Que o testamento é uma das figuras de planejamento sucessório mais acessíveis, não há dúvida. Seja ele na forma pública, particular ou cerrada, o número de testamentos registrados no Brasil, especialmente nos últimos dois anos, tem batidos recordes, razão pela qual não podemos deixar de falar em testamento rompido.
O Código Civil, responsável pela regulação da temática, dispensa apenas três artigos bem na parte final de suas disposições: arts. 1.973, 1.974 e 1.975. Os livros de doutrina, alguns parágrafos sobre o tema e geralmente na parte final do capítulo, quando o leitor já está com a atenção esvaída. A jurisprudência, não muito definida, também não traz muito à tona o tema. Mas, sim, é preciso falar em rompimento de testamento, principalmente por causa das consequências que essa parte ligeiramente “esquecida” pode causar.
Para ser considerado válido e eficaz, o testamento deve seguir uma série de requisitos, seja quanto à forma, quanto ao número de testemunhas, quanto às limitações legais – e aqui certamente o destaque vai para o respeito à legítima quando o testador possuir herdeiros necessários – ou mesmo quanto à natureza do que compõe a vontade do testador.
Assim, se um testamento não atende a esses requisitos, ele será considerado nulo, no todo ou em parte, não representando, no fim das contas, meio hábil para se fazer cumprir as disposições de última vontade de quem o elaborou. E esse, claro, não é o objetivo de quem dispõe suas derradeiras vontades em testamento.
Para além da nulidade, um testamento pode deixar de gerar efeitos no mundo jurídico quando for revogado. Só quem pode revogar um testamento é quem o fez, isto é, o testador, podendo fazê-lo de forma expressa, quando expressamente lavra um documento para dizer que o testamento elaborado está revogado (por exemplo, quando se lavra testamento público em um cartório de notas, esta é a serventia competente para lavrar também o termo de revogação do testamento, ficando tudo registrado) ou podendo fazê-lo de forma tácita, que é quando o testador lavra novo testamento.
Segundo disposição do Código Civil Brasileiro em seu artigo 1970, caput e parágrafo único, a revogação pode ser total ou parcial. Se parcial, ou se o testamento posterior não contiver cláusula revogatória expressa, o anterior subsiste em tudo que não for contrário ao posterior.
Mas o testamento também pode ser rompido.
Para que um testamento seja rompido, é necessário que sobrevenha ao testador descendente sucessível, que não o tinha ou não o conhecia quando testou e que esse novo descendente sobreviva ao testador, isto é, esteja vivo quando do falecimento do testador (art. 1.973, CC). Ainda, haverá rompimento do testamento quando este é feito na ignorância de existirem outros herdeiros necessários (art. 1.974).
E um testamento rompido, como é de se esperar, é um testamento que não tem aptidão para gerar efeitos no mundo jurídico, não possui eficácia.
Um herdeiro necessário pode surgir de diversas formas, como, por exemplo, pode ser um filho que o testador desconhecia a existência; um filho gerado após o ato de testar, vindo o testador a falecer antes de alterar o testamento para incluí-lo; uma filiação socioafetiva ou adoção post mortem.
Pode, também, ser o caso de reconhecimento de união estável post mortem ou a descoberta de algum ascendente do testador que ainda esteja vivo e, por qualquer razão que seja, ele desconhecia tal fato.
A consequência imediata e mais gravosa trazida pela interpretação literal do artigo 1.973 do Código Civil é o rompimento de todas as disposições testamentárias, tal como se o testamento não tivesse existido.
Esse, inclusive, é o posicionamento adotado por parte da jurisprudência, cujo argumento primordial, sem falar do necessário respeito à legítima – norma cogente no direito sucessório – é o de que se o testador soubesse da existência desse herdeiro necessário, não teria testado da forma como testou.
No entanto, a partir de um esforço interpretativo maior, há quem defenda, por outro lado, que o testamento não se rompe imediata e totalmente. Assim, no entendimento dessa outra linha de pensamento – adotada por outra parte da jurisprudência – se o descendente (ou outro herdeiro necessário) que sobreveio ao testador era dele conhecido quando testou, então deliberadamente o testador não quis incluí-lo em suas disposições de última vontade. Nessa situação, entende-se pela redução das disposições até o ponto de ser respeitada a legítima, ou seja, o testamento permanece válido no que toca a 50% do patrimônio do testador, na medida em que essa é a parte que ele livremente poderia dispor caso possuísse herdeiros necessários.
A discussão acima apontada – sobre o rompimento total ou não do testamento – caminha para o consenso sobre determinada vertente: o fato de o testador já possuir, no ato do testamento, algum outro herdeiro necessário.
Nesse caso, as vozes se reúnem para afirmar que o testamento se mantém hígido, não se falando em rompimento, porque necessariamente a legítima já estava resguardada nessa situação. A consequência da superveniência de outro herdeiro necessário, conhecido ou não, nessa hipótese, é apenas uma nova repartição da legítima.
Em termos ilustrativos: se uma pessoa, possuindo dois filhos, fizer um testamento, obrigatoriamente só poderá dispor de 50% de seu patrimônio, dado que os 50% restantes ficam protegidos por comporem a legítima. Assim, sobrevindo um terceiro filho que o testador desconhecia ou não possuía, não há se falar em rompimento de testamento. Aqui, a legítima que antes seria dividida por dois, passará a ser dividida por três, vindo cada um dos filhos a receber a terça parte desses 50% do patrimônio que já lhes era reservado por força de lei.
Com efeito, é possível notar que a figura do rompimento de testamento tende a afetar mais severamente quem testa desconhecendo a existência de herdeiros necessários, isto é, quem faz testamento dispondo da integralidade de seus bens, na medida em que possui a inicial percepção de que não há obrigatoriedade de respeito à legítima.
Por isso, para evitar que o rompimento total aconteça, fulminando o que seria a disposição de última vontade, ou mesmo evitar um desgaste judicial relevante e recheado de incertezas para os herdeiros testamentários, é válido voltar a atenção para a disposição contida no artigo 1.975 do Código Civil.
Esse dispositivo permite, pode-se assim dizer, a estipulação de uma cláusula subsidiária, no sentido de que, mesmo sobrevindo herdeiro necessário não existente ou não conhecido pelo testador quando testou, o testamento permanecerá válido no que toca aos 50% disponíveis do patrimônio, ficando todo e qualquer tipo de herdeiro necessário excluído expressamente dessa parte da herança.
Com essa providência, preserva-se ao menos a metade em benefício dos herdeiros testamentários, evitando relegar a eles um duro litígio cujo resultado, diante da indefinição da jurisprudência, pode levá-los a nada.
Ana Luiza Ribeiro Naback Salgado é advogada pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil e associada do departamento de wealth planning & tax do BLS Advogados, em Minas Gerais.