Por David Roberto R. Soares da Silva
A preocupação com a proteção do patrimônio tem se tornado rotina entre os nubentes que, cada vez mais, escolhem o regime da separação de bens. O tema está deixando de ser tabu. Mas será que esse regime protege totalmente o patrimônio de dívidas contraídas por um dos cônjuges ou companheiros?
O regime da separação total de bens traz, como pressuposto legal, a separação do patrimônio dos cônjuges ou companheiros, inexistindo qualquer comunhão desses bens ou mesmo de dívidas. De acordo com a lei, a adoção do regime da separação convencional de bens exige a celebração de pacto antenupcial, por escritura pública, previamente ao casamento. Será no pacto que os nubentes estabelecerão que os bens e dívidas não se comunicarão de um ao outro, e que cada um deverá responder por suas próprias obrigações.
Cumpridos os requisitos legais do pacto e celebrado o matrimônio, os efeitos do pacto passam a vigorar e se tornam eficazes.
O que pouca gente se atenta é o fato de que, mesmo na separação total de bens, há uma espécie de dívida que se “comunica” e que pode atingir o patrimônio do outro cônjuge ou companheiro. Trata-se da dívida contraída para fazer frente à “economia doméstica”, regulada nos Arts. 1.643 e 1.644 do Código Civil, que trata das disposições gerais sobre o regime de bens.
Vejamos o que estabelecem esses dispositivos:
Art. 1.643. Podem os cônjuges, independentemente de autorização um do outro:
I – comprar, ainda a crédito, as coisas necessárias à economia doméstica;
II – obter, por empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas possa exigir.
Art. 1.644. As dívidas contraídas para os fins do artigo antecedente obrigam solidariamente ambos os cônjuges.
Como se trata de regras genéricas aplicáveis a todos os regimes de bens, nem mesmo o pacto antenupcial pode excluir a sua aplicação. Isso, na prática, significa que o cônjuge, sem a necessidade de autorização do outro, pode contrair dívidas e obter empréstimos para fazer frente à economia doméstica, mas com relação a essas obrigações serão ambos solidariamente responsáveis, ainda que casados na separação total de bens.
Entram no conceito de “economia doméstica” as despesas relacionadas com o poder familiar dos filhos, o seu custeio, o que também inclui despesas com educação. Não são poucos os casos na Justiça de cobrança de mensalidades escolares dos filhos contra um cônjuge quando foram contraídas pelo outro.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já firmou posição no sentido de que as “obrigações derivadas do poder familiar, contraídas nessa condição, quando casados os titulares, classificam-se como necessárias à economia doméstica, sendo, portanto, solidárias por força de lei e inafastáveis pela vontade das partes (art. 1644 , do CC/2002 )[1]”. Também entram nesse conceito aquelas “em proveito da entidade familiar”[2], o que, venhamos, é uma expressão bastante vaga e elástica.
Contrair um empréstimo bancário para fazer uma reforma na casa para criar mais um cômodo a um filho que nasce seria uma despesa “em proveito da entidade familiar”? E uma piscina ou churrasqueira? E o que falar de dívidas no cartão de crédito para comprar comida no supermercado ou fazer uma viagem de férias?
A criatividade humana parece ser o limite, mas o tema não deixa de ser sério, podendo afetar o patrimônio mesmo daqueles casados na separação total de bens.
Por outro lado, o mesmo Código Civil estabelece quais são os deveres dos cônjuges no casamento, podendo ser estendidos para a união estável. Esses deveres estão listados no Art. 1.566 do Código, que dispõe:
“Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:
I – fidelidade recíproca;
II – vida em comum, no domicílio conjugal;
III – mútua assistência;
IV – sustento, guarda e educação dos filhos;
V – respeito e consideração mútuos.”
Se o sustento, guarda e educação dos filhos são deveres de cada cônjuge, assim também são os deveres de fidelidade e de respeito recíproco. Assim sendo, se um cônjuge se encontrar na iminência de contrair dívida ou empréstimo significativo em prol da economia doméstica, nada mais justo e coerente com os incisos I e V do Art. 1.566 do que exigir que esse cônjuge informe ao outro sobre a dívida a ser contraída. Até porque, nos termos do Art. 1.644 do Código Civil, esse outro cônjuge será solidariamente responsável pela obrigação.
Uma solução interessante nesse particular é a inserção de uma cláusula de fidelidade financeira no pacto antenupcial exigindo a comunicação entre os cônjuges sobre a contratação de obrigações vultosas em prol da economia doméstica. O casal pode estabelecer até mesmo um valor, acima do qual a comunicação deve ser obrigatória e prévia à contratação.
Uma cláusula como essa não terá o condão de eximir o cônjuge de responder solidariamente pelas dívidas ou empréstimos contraídos pelo outro para proveito da economia doméstica. No entanto, o mesmo pacto poderá estabelecer que a violação dessa cláusula (ausência de comunicação ao outro cônjuge) poderá fazer com que a dívida de um, eventualmente paga pelo outro, poderá ser objeto de cobrança, ação de regresso ou até mesmo gerar um crédito contra o espólio em caso de falecimento do cônjuge devedor.
Assim, na hora de adotar o regime da separação total de bens, vale a pena pensar em regular a questão das dívidas contraídas em prol da economia doméstica, para as quais, como visto, respondem ambos de maneira solidária.
[1] STJ, Recurso Especial nº 1444511 SP, julgamento em 11.02.2020.
[2] STJ, Recurso Especial nº 1472316 SP, julgamento em 05.12.2017.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado especializado em planejamento patrimonial e sucessório, sócio do BLS Advogados, e autor do Brazil Tax Guide for Foreigners (2010-2020), e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos (2022), Renda Variável (2021) e Tributação da Economia Digital no Brasil, todos publicados pela Editora B18.
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