Nossa afeição aos cães vem de longa data. Proteção, segurança, caça, afeto, são fatores que nos ligam a esses animais. Contemporaneamente, com a redução do número de filhos, ou até mesmo a opção por não os ter, casais trazem ao lar esses animais, sem se atentar aos custos, não só presentes, como futuros, inclusive com o término da relação.
No livro que deu origem ao filme Marley e Eu, há um trecho muito interessante, que diz o seguinte: “Na vida de um cachorro, alguns gessos caem, algumas almofadas se abrem, alguns tapetes se rasgam. Como qualquer relacionamento, este teve seus custos. Eram custos que aceitamos e contrabalançamos com a alegria, diversão, proteção e companheirismo que ele nos deu.”
Paredes arranhadas, almofadas e tapetes rasgados, são apenas algumas das despesas presentes na vida do casal enquanto comungam do mesmo lar. Mas, e com o término do relacionamento, como fica a situação? Quem tem direito à guarda? Há direito à visita? Pensão?
Aos poucos, os Tribunais do país vêm decidindo essas questões, e recentemente, o Superior Tribunal de Justiça suspendeu o julgamento de um recurso, no qual uma mulher, que após a separação, manteve a “guarda” de 6 cachorros por anos – entre eles, dois filas brasileiros – pede ao judiciário que seja ressarcida dos gastos passados, além de uma “pensão” para a manutenção dos animais de estimação, ao ex-companheiro. (REsp 1.944.228).
Durante o convívio, que era regido pela comunhão parcial de bens, já que viviam em união estável, o casal adquiriu os animais para suprir parte do afeto pela ausência de filhos, não tidos por opção deles. Com o advento da separação e da partilha de bens, os cães ficaram aos cuidados do homem, na antiga residência onde viviam. No entanto, pouco tempo depois, ele saiu de casa, deixando os animais sem os devidos cuidados.
Sabendo da situação, a mulher tomou aos seus cuidados os animais, e por consequência lógica, passou a despender vultosa quantia dedicada a eles. Passados alguns anos, já com nova família, ela ingressou com uma ação, requerendo o ressarcimento dos gastos já havidos, e uma quantia mensal que pudesse arcar com as despesas dos bichos.
Existem muitos casos discutindo direito à guarda compartilhada, visitação e outros tantos em curso no judiciário, o que não será objeto desse ensaio. A questão aqui tratada cuida se é devida pensão alimentícia ao cachorro, se é que pode se chamar assim.
Juridicamente, animais são tratados como bem móvel semovente, ou seja, aquele que pode ser movido de um local para outro, por força própria. Por outro lado, a pensão alimentícia pelo vínculo familiar tem como pressupostos relação de parentesco – parentes, cônjuges ou companheiros – apta a gerar a necessidade de auxílio financeiro que auxilie no custeio alimentar, vestuário e saúde.
Mas aqui reside o maior detalhe dessa ação: a mulher não ingressou com ação de alimentos, e sim, com um pedido de ressarcimento por obrigação contraída em comum. Não quis a autora buscar seu direito por meio de relação parental, mas por obrigação jurídica comum, de direitos e obrigações entre as partes.
No acordo de dissolução da união estável, nada se estabeleceu com relação aos cães, o que presumiu a posse em comum, consequentemente, e por mais que ele tenha verbalizado em sua defesa que não havia interesse na “propriedade dos bens”, há verdadeira obrigação de manutenção e custeio com os animais.
É elucidativo o seguinte trecho da sentença: “A disciplina legal dispensada pelo Código Civil de 2002 aos animais é de bem móvel, mais precisamente, semovente, art. 82. Todavia, o tratamento jurídico a ser conferido aos animais, notadamente de estimação, evoluiu de modo que eles não podem mais ser considerados como simples coisa. É relevante levar em conta que o animal de estimação destina-se ao preenchimento de necessidades humanas emocionais e afetivas. Ademais, trata-se de ser senciente com capacidade para manifestar alegria, tristeza, medo e dor. Está superada a definição clássica do direito civil que os classifica como coisa, bem semovente”.
Um outro ponto digno de nota foi a alegação de prescrição da obrigação, ventilada pelo réu. No seu entendimento, passados mais de 2 anos da ação de cobrança por valor relacionado a alimentos, tal dívida estaria prescrita, por força do artigo 206, § 2º do Código Civil, o que por certo não vingou. Como a obrigação é de outra natureza, que não a alimentícia, e não há no direito regra específica aplicável ao caso, aplica-se o artigo 205 do mesmo Código, que tem prazo de 10 anos para exercício.
Em sede de recurso, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo manteve a sentença integralmente. Agora o processo está em trâmite no Superior Tribunal de Justiça, onde aguarda a palavra final sobre o caso. Já houve um voto favorável à reforma da decisão, mas ainda é cedo afirmar qual será o desfecho.
De toda essa contenda, o que se destaca, por mais óbvio que seja, é a falta de comunicação do casal quando da realização do planejamento patrimonial. Não seria muito mais tranquilo abordar assuntos tão delicados, quando ainda havia serenidade na constância conjugal?
É simples dizer “Não tenho condições de arcar”, ou, ainda no momento da dissolução da relação, estipular a quem compete a “guarda” dos cães. Veja o tamanho da responsabilidade em adquirir um animal de estimação, e o quanto o impacto nas contas pode ser gravoso.
Pode parecer absurdo de início, mas com a proliferação de casais que adotam animais de estimação, e com o Poder Judiciário firmando cada vez mais a ideia que esses seres vivos são parte da família, carecedores de cuidados durante e ao término da relação conjugal, decisões nesse sentido serão cada vez mais frequentes.
Artur Francisco da Silva é advogado do departamento de wealth planning e tax do Battella, Lasmar & Silva Advogados.
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