Por Nohad Harati
O mercado cripto sempre foi visto como uma alternativa para as limitações do sistema financeiro tradicional. Após pouco mais de uma década de ampla liquidez, o que não faltou foi criatividade, seja na ilustração das criptomoedas, seja nos nomes utilizados. Mas ainda falta lastro e regulamentação para as stablecoins.
Até então, elas pareciam ser a solução perfeita para governos que imprimem dinheiro demais, banqueiros inescrupulosos e para endereçar a desigualdade, dado que muitos as enxergavam como uma plataforma para se fazer negócios.
De um modo geral, pode-se dizer que esse ecossistema se desenvolveu entre:
- Os entusiastas da tecnologia, que criam as suas próprias moedas;
- Os provedores de infraestrutura, com os seus parrudos computadores;
- As exchanges, que se beneficiam de qualquer coisa que possa ser transacionada, sem a obrigação de dar qualquer respaldo aos clientes;
- Os demais, que fazem a engrenagem girar.
Olhando os participantes acima, não é difícil de fazer uma analogia com os bancos de investimento, bolsas de valores, corretoras e investidores que investem em produtos mais tradicionais do mercado financeiro não fosse por um único detalhe: o lastro.
Algoritmo
O alvoroço enfrentado pelas criptomoedas mais recentemente não se deu por conta de algum fato novo sobre a guerra na Ucrânia ou de comentários mais incisivos de política monetária por parte do Federal Reserve (Fed) ou do Banco Central Europeu (BCE).
Algo semelhante à uma corrida bancária virtual abalou a Terraform Labs, responsável por um mercado avaliado em US$ 40 bilhões e cujo modelo de negócios se baseava em uma stablecoin (TerraUSD), com o propósito de manter a paridade com o dólar, e uma criptomoeda (Luna).
Um algoritmo calibrava a relação entre ambas. Para cada unidade de stablecoin emitida, o equivalente a US$ 1 de Luna tinha que sair de circulação.
Volatilidade das stablecoins
No mundo cripto, não há nada que atenda ao terceiro requisito de uma moeda (reserva de valor) ou a torne obrigatória (curso forçado), o que explica muito da sua volatilidade.
Além disso, não existem critérios para se apurar o seu valor intrínseco, visto que não possuem um fluxo futuro de retornos, seja via juros, dividendos ou qualquer outro tipo de renda. Nesse caso, o que dizer então de grandes ordens de venda, acompanhadas de comentários negativos no Twitter?
Pequenos investidores, detentores de criptoativos, inevitavelmente são tomados pelo pânico. Entretanto, um algoritmo se limita a fazer exatamente aquilo o que foi programado: emitir criptomoedas, que consequentemente perdem valor.
O resultado é um contágio virtual, conforme outras moedas, teoricamente mais sólidas, são vendidas na tentativa de se conter os danos. O quanto essas sofrem é decorrente, novamente, da qualidade de seus lastros.
Casos envolvendo stablecoins
Tether
Tether, considerada a maior das stablecoins, com um valor de mercado superior a US$ 81 bilhões, não informa detalhes sobre a composição de seu lastro, dado não se tratar de um negócio regulado.
Já no ano passado, muitos apontavam para a estratégia arriscada pela qual assegurava a sua paridade com o dólar: moeda em espécie e títulos do tesouro norte-americano compunham apenas 5% do total de seus ativos.
Auditorias periódicas são uma raridade, o que dificulta o trabalho de se separar os vencedores dos perdedores. De qualquer forma, é fato que esses ativos possuem uma forte correlação positiva com o mercado de ações, com o agravante de terem uma liquidez menor.
Diante do “risk-off” que tomou conta das ações de empresas de tecnologia, que outros elementos poderiam dar qualquer sustentação às criptos? Normalmente, os fundadores apoiam as suas “crias” nos momentos de maior estresse, mas nem sempre isso resolve.
Coinbase
O Initial Public Offering (IPO) da plataforma de negociação Coinbase é bastante ilustrativo. Na época, imaginava-se que uma exchange negociada em um bolsa tradicional poderia funcionar como uma porta de entrada para o lançamento dos criptoativos.
Sendo uma entidade regulada, ela atende aos requisitos impostos pela Securities and Exchange Commission (SEC). Da mesma forma, segue o que determinam as leis norte-americanas no que diz respeito às companhias de capital aberto.
Dito isso, não foi preciso muito para que um formulário, entre os tantos que as empresas desse tipo precisam apresentar, causasse desconforto ao informar que os investidores poderiam perder seus criptoativos custodiados junto à exchange.
Tratava-se de um disclaimer, aquele tipo de informação que ninguém lê, mas que deixa explícita a ordem pela qual os credores são atendidos na hipótese da Coinbase enfrentar qualquer dificuldade financeira (hierarquia de credores).
GYEN
Em se tratando de ativos não regulamentados, não existe qualquer mecanismo que estipule a transferência de contas para outra entidade regulada (tal como ocorre com as corretoras de valores) ou até mesmo o ressarcimento aos investidores (como é o caso do Fundo Garantidor de Créditos – FGC para os bancos).
Foi exatamente isso o que descobriram os investidores da GYEN, uma stablecoin supostamente atrelada ao iene japonês e que teve a sua negociação suspensa pela própria Coinbase após perder 80% do seu valor em um único dia.
Com o ativo “congelado”, cai por terra a utilidade de uma exchange que funciona 24 horas por dia, 7 dias da semana.
Conclusão sobre as stablecoins
As stablecoins fazem a ligação entre o mercado tradicional e o mercado cripto, o que explica a preocupação dos agentes financeiros sobre os impactos que iniciativas como essas podem trazer.
É inegável que as perdas no mundo virtual são compensadas com as vendas de ativos emitidos por governos e empresas que, de uma forma ou de outra, estão nas carteiras de todos via Exchange Traded Funds (ETFs). Em outras circunstâncias, eles não seriam atingidos por falhas de algoritmos, por exemplo.
Por mais que haja uma tecnologia fantástica por trás delas (blockchain), as criptomoedas são vistas com ressalvas, pois são usadas inclusive como forma de pagamento para operações ilícitas. Isso só aumenta a pressão para que haja algum tipo de supervisão, considerando ainda o seu caráter especulativo e a falta de uma regulamentação internacional padronizada.
No mercado financeiro, costuma-se dizer que a maré alta (momento de juros baixos e ampla liquidez) eleva todos os barcos (valoriza os ativos). O mesmo vale para as criptomoedas, desde que não se olhe para os cascos.
Nohad Harati possui MBA em Finanças e LLM em Direito do Mercado Financeiro pelo Insper/SP, e é gestora de uma carteira proprietária e responsável por um Family Office em São Paulo/SP.
(*) Artigo publicado originalmente no site Mais Retorno (https://maisretorno.com/portal/stablecoins-comportamento-e-uma-questao-de-lastro). Republicação autorizada pela autora.