Há controvérsia sobre a extensão do patrimônio que pode ser objeto de testamento, não sendo raro ver indagações de que ele não pode tratar da legítima, mas apenas da disponível. Será?
Por entender que o autor da herança tem o direito de organizar e estruturar a sua sucessão, em recente decisão, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a parte indisponível do patrimônio do testador pode ser tratada em testamento, desde que isso não implique privação ou redução da parcela a eles destinada por lei.
A discussão girou em torno da interpretação do Art. 1.857, § 1º, do Código Civil, que aparentemente sugere que a legítima dos herdeiros necessários não pode ser objeto de disposição testamentária. No entanto, o STJ entendeu que essa interpretação deve ser analisada em conjunto com outras normas que regem o tema para se chegar a uma conclusão mais adequada.
O caso em questão teve origem quando o testador (autor da herança) lavrou testamento em que dispôs sobre a totalidade de seu patrimônio, dividindo-o entre seus filhos – herdeiros necessários – e sobrinhos – herdeiros testamentários. Na divisão, os filhos ficaram com 75% dos bens e os sobrinhos, com o percentual restante.
Adicionalmente, durante o processo de inventário, duas filhas questionaram a inclusão da legítima dos herdeiros necessários na base de cálculo dessa divisão. Para elas, o testamento deve compreender apenas a metade disponível do acervo patrimonial, requerendo, assim, que o testamento fosse considerado como se só tratasse da divisão da parte disponível, excluindo-se os 50% do patrimônio que a lei reserva aos herdeiros necessários.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) acolheu o pedido das filhas, resultando na interposição de recurso especial por parte dos sobrinhos, com a alegação de ofensa à soberania da vontade do testador, uma vez que a legítima dos herdeiros necessários teria sido integralmente respeitada.
A ministra Nancy Andrighi, relatora do caso no STJ, destacou que deve ser realizada uma análise sistêmica das leis que tratam sobre sucessão no caso em questão. De um lado – explicou –, há a indispensável proteção aos herdeiros necessários por meio da legítima e, de outro, a necessária liberdade de dispor conferida ao autor da herança, cuja vontade deve ser respeitada nos limites legais.
A ministra ainda afirmou que não há impedimento para que o testamento faça referência à parte indisponível (legítima) destinada aos herdeiros necessários, desde que isso não resulte em redução da parcela que a lei os destina. Em outras palavras, é possível mencionar a legítima no testamento, especialmente quando o autor da herança deseja organizar e estruturar a sucessão em vida, desde que seja claramente indicado que a metade indisponível, ou mais, será destinada aos herdeiros necessários.
Vale transcrever trecho do acordão:
“A legítima dos herdeiros necessários poderá ser referida no testamento, especialmente nas hipóteses em que o autor da herança pretenda, em vida e desde logo, organizar, gravar e estruturar a sucessão, mas desde que seja mencionada justamente para destinar a metade indisponível, ou mais, aos referidos herdeiros” (O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial). Por fim, a decisão enfatiza a importância de redigir um testamento de forma clara e precisa, para assegurar que os desejos do testador sejam atendidos. Essa importante determinação demonstra a relevância do testamento como uma ferramenta essencial para o planejamento sucessório, que vai muito além de simplesmente destinar os bens disponíveis.
Ana Bárbara Zillo é advogada do departamento de wealth planning do BLS Advogados, em São Paulo.
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