A novela da guerra fiscal entre Estados e Municípios a respeito da tributação do software ganha mais um capítulo.
Em um breve histórico, de acordo com o art. 7º, inciso XII da Lei nº 9.610/1998, o software é considerado obra intelectual, sendo protegidas as criações do espírito expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível. Adicionalmente, a Lei nº 9.609/1998 prevê que o software é protegido pelo regime jurídico dos direitos autorais e que sua exploração econômica se dá por meio de contrato de licença.
A despeito do conceito legal do software e de sua forma de exploração econômica (derivada deste conceito), Estados e Municípios travam uma batalha acerca da competência para tributar as operações que envolvam software: de um lado, Estados exigem ICMS sob a alegação de ocorrência de ato de mercancia (venda de mercadoria); de outro, Municípios cobram ISS, entendendo haver prestação de serviços.
Em razão de ISS e ICMS serem constitucionalmente mutuamente excludentes, a disputa foi levada ao Judiciário.
Em 1998, o STF emitiu posicionamento emblemático no Recurso Extraordinário (RE) 176.626/SP, em que estabeleceu paradigmática diferenciação entre software de prateleira e software por encomenda. A despeito do conceito dicotômico veiculado pelo STF, baseado na tangibilidade e produção em série para determinação do imposto incidente, o Estado do Mato Grosso editou a Lei Estadual nº 7.098/1998 ampliando o espectro de incidência do ICMS e estabelecendo que o imposto também seria devido em operações com software, inclusive por meio de transferência eletrônica de dados (download).
A constitucionalidade desta lei foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (“ADI”) nº 1.945/MT. É no âmbito desta ADI que o STF escreveu mais um capítulo para a novela.
Em sessão de 4 de novembro de 2020, foi proferido voto pelo Ministro Toffoli concluindo pela incidência do ISS, excluindo-se das hipóteses de incidência do ICMS o licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador, previsto no item 1.05 da lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003.
Do voto do Ministro cumpre destacar alguns pontos que jogam luz neste assunto complexo e intrincado.
Após breve esforço histórico a respeito do conceito do software e sua forma de exploração econômica, o Ministro Toffoli bem pontua que, no bojo do nosso sistema jurídico, afirmar que um bem incorpóreo não está sujeito à mercancia, unicamente em razão de sua intangibilidade, é equivocado. Sustenta, ainda, que a dicotomia entre software padronizado e software por encomenda é insuficiente para determinar a tributação pelo ISS ou pelo ICMS, uma vez que a binariedade de obrigação de fazer e obrigação de dar já não se encaixa nos contratos complexos.
Seguiu aduzindo que, constitucionalmente, o ICMS incide sobre mercadorias acompanhadas de prestação de serviços, exceto se tais serviços forem especificados por lei complementar como serviços tributáveis pelo ISS.
Assim, pelo perfil constitucional, o simples fato de um serviço estar definido em Lei Complementar como tributável pelo ISS seria suficiente para atrair sua tributação pelo ISS e afastar a incidência do ICMS.
Desta forma, o licenciamento ou cessão de software, seja padronizado ou por encomenda, independentemente da forma de transferência (download ou nuvem), se enquadrando no item 1.05 da Lista Anexa da Lei Complementar nº 116/2003, já teria o condão de atrair a tributação pelo ISS, excluindo-se o ICMS.
Não bastando tal fato, a Lei nº 9.609/1998 ao dispor sobre a proteção intelectual de programa de computador, deixa claro que se trata de obra do fazer humano. Não fosse assim, não teria razão tratar de direitos de autor. Adicionalmente, a mesma lei expressamente estabelece que o uso de programa de computador deve ser explorado por meio de contrato de licença.
Em vista da disciplina legal conceitual sobre software é que a Lei Complementar nº 116/2003 consignou em sua lista de serviços tributáveis pelo ISS o licenciamento e a cessão de direito de uso de programa de computador (sem distinguir se padronizados ou personalizados).
Concluindo pela inconstitucionalidade da exigência de ICMS nas operações com software previstas no item 1.05 da LC nº 116/2003, o Ministro Toffoli arremata
Em suma, não vejo como desconsiderar, para o deslinde da presente controvérsia, a legítima opção do legislador complementar de, por meio do subitem 1.05 da lista anexa à LC nº 116/03, fazer incidir o imposto municipal, e não o estadual, sobre o licenciamento ou a cessão de direito de uso de programas de computador. Ou seja, considerando-se a LC nº 116/03 e o critério adotado pelo próprio legislador complementar, não vislumbro como se deixar de se aplicar o ISS às operações com programas de computador, notadamente tendo em vista o fato de que, ao meu sentir, o legislador não desbordou do conceito constitucional de “serviços de qualquer natureza”.
O voto do Ministro Toffoli foi seguido pelo Ministro Fux na sessão de 11 de novembro, mesma oportunidade em que o Ministro Kassio Marques pediu vista e suspendeu o julgamento da ADI.
Por fim, necessário mencionar que o voto do Ministro Toffoli propôs a modulação dos efeitos do julgamento da inconstitucionalidade em razão do tempo decorrido desde a propositura da ADI e a concessão de cautelares que não suspenderam os dispositivos inconstitucionais. Assim, a proposta é que a declaração da inconstitucionalidade produza efeitos a partir da sessão em que se concluir o julgamento do mérito.
Priscila Lucenti Estevam, advogada e contadora, e coautora dos livros Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos e Tributação da Economia Digital no Brasil, publicados pela Editora B18.
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