No fim do ano passado, o Conselho Administrativo de Recursos Federais (CARF) julgou o primeiro caso envolvendo um trust estrangeiro e seus reflexos para fins tributários no Brasil. O caso possui certas peculiaridades e não deve ser compreendido como o posicionamento definitivo sobre o assunto.
O processo ficou conhecido como o “caso Eduardo Cunha”, do ex-deputado federal envolvido nos escândalos da Operação Lava-Jato e que manteve recursos não declarados no exterior por meio de um trust. Investigações conduzidas pela Receita Federal resultaram na lavratura de auto de infração com a cobrança de imposto de renda pessoa física, multa e juros de mora.
Em síntese, os motivos que levaram à lavratura do Auto de Infração foram: (i) omissão de dividendos recebidos de fontes localizadas no exterior, creditados em contas de trust; (ii) omissão de rendimentos referente a vantagens indevidas recebidos de fonte no exterior em conta de trust; (iii) omissão de rendimentos tendo em vista gastos incompatíveis com a renda, caracterizado pelo excesso de aplicações sobre origens/sinais exteriores de riqueza, conforme fluxo financeiro mensal; (iv) omissão de rendimentos caracterizados por depósito bancário de origem não comprovada, em conta de trust; (v) omissão de ganhos de capital na alienação de ações e outros ativos financeiros mantidos no exterior, em contas de trusts; (vi) multa isolada por falta do recolhimento mensal obrigatório atinente aos rendimentos recebidos no exterior.
Embora não tenha sido amplamente divulgado, o resultado do julgamento traz boas reflexões para os contribuintes brasileiros que são beneficiários de trust no exterior.
A primeira boa reflexão trata da ilicitude das provas. A defesa do ex-Deputado Federal arguiu que as provas colhidas pela Receita Federal no âmbito da Operação Lava-Jato eram ilícitas, posto que foram recebidas sem a prévia autorização judicial.
O voto vencedor no CARF contra o contribuinte ressaltou que os dados em poder do Ministério Público Federal foram compartilhados com a Receita Federal por força de autorização judicial dada pelo falecido Ministro Teori Zavascki do Supremo Tribunal Federal, nos autos da Ação Cautelar 4008/DF. Segundo a decisão do CARF, o Ministro Teori Zavascki, quando do recebimento parcial da denúncia contra Eduardo Cunha no Inquérito 4146/DF, ressaltou que a transferência, por sistema de cooperação jurídica internacional, do material probatório colhido na Suíça se operou sem qualquer limitação ao alcance das informações e aos meios de prova compartilhados, nada impedindo a utilização daquelas provas nas investigações produzidas no Brasil.
A decisão esclarece que as informações obtidas por sistema de cooperação jurídica internacional, no que tange à quebra de sigilo bancário, são válidas, desde que precedidas de autorização judicial. No presente caso, a arguição da defesa do ex-Deputado Federal desconsiderou a autorização dada pelo Ministro Teori Zavascki.
A reflexão seguinte trata da inexistência de disponibilidade jurídica ou econômica dos dividendos e rendimentos recebidos por trust mantido no exterior. O contribuinte sustentou que era apenas um beneficiário final dos trusts mantidos no exterior e, dessa forma, não seria titular do patrimônio de propriedade dos trusts. Por essa razão, o contribuinte não possuía disponibilidade jurídica ou econômica dos dividendos, rendimentos e ganhos de capital auferidos pelos trusts, sendo em verdade apenas o beneficiário econômico efetivo final.
Na instrução de sua argumentação, a defesa trouxe à baila dois pareceres, sendo o primeiro assinado pelo ex-Ministro das Relações Exteriores Francisco Rezek e o segundo assinado pelo saudoso Professor José Tadeu de Chiara.
Ambos os pareceres tratam dos personagens que caracterizam um trust: (i) o settlor ou instituidor, aquele que, por meio de uma manifestação unilateral de vontade, destina parte ou o todo de seu patrimônio para formar o trust; (ii) o trustee, a pessoa ou instituição que irá administrar os bens, ressaltando-se que os bens não se confundem com o patrimônio pessoal do trustee, mas formam um patrimônio à parte; e (iii) o beneficiary ou beneficiário final do patrimônio, um ou mais indivíduos indicados pelo settlor, para, conforme termos e prazos estabelecidos na constituição do trust, receber do trustee o que for objeto do trust (“res”), condicionado ou não a evento futuro definido pelo settlor. Este, pode, também, determinar que o beneficiário vá recebendo os frutos da “res” ao longo do tempo.
Essa distinção se faz necessária para orientar sobre o entendimento majoritário da doutrina, que pressupõe que a triangularidade dessa transação é transitória, existindo apenas até a conclusão da transferência da propriedade do settlor ao trustee. Isso porque, consumada essa transferência, o settlor deixa de intervir no negócio: ele não detém mais direitos sobre o patrimônio transferido ao trust nem sobre sua administração ou destino final.
A partir desse momento, a relação jurídica passa a envolver apenas o trustee e os beneficiários. Se de um lado o trustee encontra-se obrigado a administrar os bens em favor dos beneficiários, de outro, são estes os detentores de legítimo interesse em questionar atos do trustee que violem aquela obrigação – ainda que a doutrina vacile quanto à aventada existência ou extensão de um direito de sequela.
Entretanto, à parte o interesse em questionar atos do trustee que possivelmente violem o trust, os beneficiários não teriam direito líquido e certo a precipitar o recebimento dos bens confiados ao trustee.
Para os doutrinadores dessa corrente, a causa função do trust é, pressupostamente, o exercício da propriedade dos bens e o cumprimento pelo trustee das regras de gestão dos bens objeto do negócio jurídico do trust, destinação de seus rendimentos, se houver, e da sua propriedade ao beneficiário; para isso, o funcionamento da relação jurídica depende, por óbvio, da aquisição da propriedade do bem, pelo trustee ao settlor, que assim permite a entrada em funcionamento do trust. Aí o indispensável efeito real condicionante do funcionamento do trust.
A doutrina majoritária também reconhece que a revogabilidade e a discricionariedade do trust são elementos fundamentais para atestar a validade do negócio jurídico firmado entre as partes.
O entendimento é de que a hipótese de o settlor deter o direito de revogar os poderes dados inicialmente ao trustee, ou poder alterar as regras do trust durante a vigência do contrato, não respeita, em regra, o instituto do trust, posto que possibilitaria a qualquer tempo a disposição dos bens por seu instituidor.
Ao analisar a questão, os Conselheiros observaram que as todas as provas davam como certa a não observância do instituto do trust, pois o ex-Deputado Federal cumularia, na prática, as figuras de settlor, trustee e beneficiary.
Para além dessa análise, os Conselheiros observaram também que os trusts mantidos no exterior pelo ex-Deputado Federal eram qualificados como revogáveis, havendo, inclusive, documento relativo a uma revogação parcial com a assinatura de Eduardo Cunha.
Desse modo, os Conselheiros entenderam que os trusts constituíam uma mera formalidade elaborada para promover a blindagem do patrimônio, sendo nítida a artificial e dolosa interposição dos trusts para ocultar ser o ex-Deputado Federal o real titular das contas e afastar indevidamente a incidência do imposto sobre a renda.
Portanto, se o contribuinte exercer o controle da conta, podendo usar, gozar, administrar e dispor do dinheiro ali existente, é possível que a Receita Federal o autue como real titular das contas, desconsiderando o instituto do trust.
O entendimento do CARF não deve ser aplicado automaticamente para todo e qualquer caso de contribuinte que mantenha um trust no exterior, devidamente declarado às autoridades brasileiras. No caso em questão, não se pode esquecer que o instituto do trust foi usado para ocultar recursos de origem supostamente ilícita, não declarados e não tributados no Brasil.
Há ainda a questão do que constitui patrimônio do trust, pois isso pode ser relevante para determinar o tratamento fiscal adequado.
No caso analisado pelo CARF (Acórdão nº 2401-010.022), o trust era detentor direto de conta bancária e recursos financeiros no exterior. Por essa razão, ao desconsiderar o trust em razão da posição concomitante do ex-Deputado como settlor, trustee e beneficiário, o CARF entendeu que os recursos, ganhos e rendimentos deveriam ser tributados na pessoa física, dada a inexistência de personalidade jurídica do trust.
Talvez o resultado do julgamento pudesse ter sido parcialmente diferente se os recursos financeiros estivessem em conta bancária detida por empresa offshore e as ações dessa offshore é que fossem detidas pelo trust. Nesse caso, os rendimentos e ganhos teriam sido obtidos por uma entidade com personalidade jurídica própria, os quais, nos termos da legislação atual, somente são tributados pelo acionista/beneficiários no momento e na proporção em que os recursos sejam utilizados em seu favor ou a ele efetivamente distribuídos. Mas esse não era o caso dos autos e não é possível dizer, com base nas provas existentes no processo, como poderia ter sido a interpretação do CARF caso tivesse havido uma offshore entre os recursos e o trust.
Felipe Pereira Louzada é advogado tributarista, associado sênior do BLS Advogados em São Paulo, e coautor do livro Renda Variável e do e-book Saída Definitiva do País – Guia Prática das Obrigações Tributárias, publicados pela Editora B18.
SAIBA TUDO SOBRE COMO TRUST E SEUS EFEITOS PARA FINS BRASILEIROS COM O NOSSO BEST-SELLER “PLANEJAMENT PATRIMONIAL”.