Por Roberto Prado de Vasconcellos
Algumas vezes é fácil perceber que a máxima “não julgue nada sem conhecer” é sabida, mas acaba ignorada em determinados contextos. Neste sentido, considerando a inexistência de trusts no direito brasileiro, a inegável versatilidade dessas estruturas e a variedade de relações jurídicas que nelas podem estar contidas, exige a máxima atenção ao princípio “não julgue um trust sem conhecê-lo”.
Apesar de o instituto do trust ser um dos institutos jurídicos mais antigos da história, sua compreensão sempre passou à margem do direito brasileiro. Após o advento do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), regulado na Lei nº 13.254/2016, que permitiu um grande número de brasileiros regularizar ativos mantidos há anos no exterior, tornou-se público e notório o grande número de trusts de brasileiros fora do Brasil. Consequentemente, passou-se então a se exigir dos aplicadores do direito, interpretações sobre um instituto que nunca foi regulado, ou mesmo muito estudado, por acadêmicos, profissionais atuantes ou mesmo por autoridades tributárias no Brasil.
Aqueles mais familiarizados com o instituto do trust no exterior sabem das suas diversas utilidades e complexidades. Sua regulação em países como, por exemplo, os Estados Unidos é muito densa, assim como é ampla e variada a jurisprudência sobre o tema naquele país.
A crescente frequência com que questões ligadas às estruturas de trusts aparecem em manifestações da Receita Federal, no Poder Judiciário e na mídia em geral são indubitavelmente indicadores da necessidade de o direito brasileiro, em algum momento, regulamentar o instituto.
Atualmente, o Projeto de Lei nº 4758 de 2020, em tramitação no Congresso Nacional, tem o objetivo de ser a primeira lei brasileira sobre trusts. Contudo, enquanto a regulamentação legislativa não acontece, e não haja um direito brasileiro de trusts, aqueles que criaram estas estruturas no exterior, ou mesmo que tenham alguma relação com estruturas de terceiros na qualidade de beneficiários (ou mesmo trustees/fiduciários), ficam sujeitos à inevitável insegurança jurídica brasileira.
Há um ano, a Receita Federal emitiu Solução de Consulta nº41, de 2020, tratando, de forma automática e simplista, as distribuições de um trust à uma beneficiária, esposa do instituidor, como sendo renda, ao invés de possíveis doações ou herança. Não custa lembrar que o imposto de renda é administrado pela própria Receita Federal, e sua alíquota pode chegar a 27,5%, enquanto o ITCMD, administrado pelos Estados e aplicável a doações e heranças, possui como alíquota máxima de 8% (o Estado de São Paulo adota a alíquota de 4%).
Recentemente, tivemos notícia de sentença em primeira instância de mandado de segurança, na 11ª Vara Federal de São Paulo que, aparentemente tomando a mencionada Solução de Consulta nº 41/2020 como referência, determinou que distribuições ao beneficiário, filho do instituidor do trust, seriam passíveis de tributação pelo IR, ao invés de pelo ITCMD.
A sentença e solução de consulta mencionadas incorrem no mesmo erro, ou seja, sequer analisam a relevância das relações jurídicas que fundamentaram a própria existência do trust. Afinal, enquanto uma das finalidades mais comuns dos trusts é facilitar a sucessão no exterior, há uma maior probabilidade, que na maioria das vezes se confirma, no sentido de que nos trusts onde a relação entre instituidor e beneficiário seja de marido e esposa, ou mesmo pai e filho, as distribuições tenham a natureza de doação ou herança. Portanto, o imposto aplicável seria somente o ITCMD, de competência dos estados, não sendo possível caracterizar estas distribuições como rendas para sujeitá-las ao imposto de renda.
Outra grave omissão, detectável tanto na sentença quanto na solução de consulta, é ausência de qualquer menção à revogabilidade ou irrevogabilidade da estrutura, ou mesmo se os poderes do fiduciário (trustee) eram ou não discricionários.
A ausência de verificações desta natureza demonstra a fragilidade das conclusões cujas fundamentações foram tão superficiais a ponto de, implicitamente, insinuarem que as distribuições de qualquer trust devem ser tributadas como renda.
É fundamental que a tributação brasileira sobre trusts reconheça que a versatilidade do instrumento permite atender diversas finalidades, sucessórias ou não, do instituidor. Assim, para que qualquer distribuição seja caracterizada como doação, herança, ou renda, é imprescindível saber não apenas se a estrutura é revogável e se há discricionariedade, mas também é necessário questionar, por exemplo, o regime de casamento no caso de cônjuge que seja beneficiário. Infelizmente, as tentativas de moldar a tributação brasileira sobre distribuições de trusts, tanto na solução de consulta como na sentença comentadas, são evidências claras de violação do princípio “não julgue um trust sem conhecê-lo”.
Roberto Prado de Vasconcellos é especialista em tributação americana, advogado tributarista sênior, e coautor do livro Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos, publicado pela Editora B18.