Por Ivone Zeger
Crianças não vêm ao mundo para suprir expectativas, elas precisam de lar e afeto.
O dia a dia de quem atua no Direito de Família é repleto de episódios em que as sensações estão à flor da pele, daí quase sempre virem à tona todos os tipos de sentimentos. Assim, estampam-se histórias de amor e fúria, de desprezo ou compaixão. Como a lei funciona para as emoções como um grande balde de água fria, ao advogado resta manter a cabeça no lugar e orientar o andamento das providências.
Entretanto, certos casos mexem com a emoção de advogados e magistrados. No campo das adoções pululam histórias que dariam belos romances e filmes, como o que aconteceu com uma pedagoga de Itajaí, no estado de Santa Catarina. Ela foi protagonista do primeiro caso que se tem notícia, no estado, de pedido de adoção post mortem. A pedagoga estava com a guarda de uma menina de um ano e meio que fora abandonada pelos pais. A garota faleceu antes do processo de adoção terminar.
É importante esclarecer que adoções post-mortem são previstas em lei, mas quando ocorre o oposto, ou seja, quando o adulto adotante falece em meio a providência de um processo de adoção. É possível, então, que a criança seja beneficiada com a adoção e todos os benefícios decorrentes.
No caso de Itajaí, o processo poderia simplesmente ser extinto, mas a pedagoga fez o pedido para que ele fosse concluído. O juiz Ademir Wolff, titular da Vara da Infância e Juventude da localidade, entendeu que a pedagoga queria “continuar sendo mãe e ver o nome pelo qual chamava a filha gravado em sua lápide, preservando-se inclusive o direito de cultuar a filha que era sua, e não mais daqueles que renunciaram ao pode familiar”. Entendendo que a mãe buscou o reconhecimento de uma adoção que foi vivida na prática, embora por pouco tempo, ressaltou que a adoção post mortem – nesse caso em particular – não gerou reflexo prático ou jurídico para terceiros, uma vez que a criança não tinha patrimônio ou herdeiros, tampouco direitos sucessórios a serem resguardados.
É bom salientar que, em outras situações, pode acontecer de a morte de um bebê gerar, sim, reflexos jurídicos e práticos. O art. 1.798 do Código Civil diz que: “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Assim, uma criança pode ser detentora de uma herança logo ao nascer; ou porque há um processo de sucessão em curso – por morte de bisavô ou bisavó, avô ou avó, pai ou mãe – e, nesse caso, ela é considerada herdeira necessária; ou por estar designada como herdeira em algum testamento. Se essa criança falece, o destino dos bens que seriam dela terá seu curso modificado dentro do processo de sucessão.
Voltando ao assunto, o leitor pode achar a história da pedagoga interessante, mas nem de todo comovente. Ocorre que a bebê, desde o nascimento e abandono por parte dos pais biológicos, não era saudável. Portadora de Síndrome de Down leve, a bebê apresentava também hipotonia – caracterizada por falta de tono muscular –, lesão neurológica, mosaicismo – que é uma espécie de distúrbio genético –, sucção débil, cardiopatia congênita e Síndrome de West, que é uma lesão cerebral grave. Solteira, ao assumir a guarda da criança, a pedagoga se mudou para a casa dos pais para poder oferecer os cuidados necessários.
Não é tão difícil entender o motivo da mãe adotiva querer concluir o processo: o exercício do cuidar incessante leva ao desenvolvimento de um enorme sentimento de afeto. Não por acaso, o juíz concluiu: “Reconheça-se então este amor da adotante, dando-lhe o alento que lhe resta, a saudade de uma filha que era, sim, sua, e uma história que deve ser lembrada como um verdadeiro exemplo de adoção incondicional, nem que seja nesta sentença”.
Entretanto, não conto esse caso simplesmente para comover os leitores. Me chamou a atenção a frase “verdadeiro exemplo de adoção incondicional”. Eu explico o porquê. Embora considere a adoção um ato maravilhoso, e também entenda o desejo dos pais de quererem crianças saudáveis, algumas exigências dos pais candidatos à adoção me fazem refletir bastante.
Muita gente afirma que a burocracia dos processos de adoção é desanimadora. Porém, ela se faz necessária. Aliás, mesmo com tanto cuidado por parte do estado, há inúmeros casos de adoções malsucedidas e até, pasmem, de “devolução”.
Mas será que é mesmo a burocracia que não faz juntar as pontas?
Vejamos. O Cadastro Nacional de Adoção mostra que 90,9% do total de pretendentes quer crianças brancas. Na outra ponta, do total de crianças a serem adotadas, 2.272, ou o correspondente a 46%, são pardas; outras 916, ou 18,69%, são negras; 35 (0,71%) são amarelas e 29 (0,50%) são indígenas. Apenas 1.657, ou 33,82 %, são brancas. Ou seja, a conta não bate.
Cerca de 60% dos pais adotantes não têm preferência quanto ao sexo da criança, mas 33,31% querem meninas. E do outro lado? A maioria se constitui de meninos: são 2.754 garotos esperando um lar. Além disso, 57,8% destes interessados desejam adotar crianças só até os dois anos de idade.
Outra questão importante: mais de 80% das crianças que esperam um lar possuem irmãos. Embora nem todos os irmãos estejam cadastrados para adoção, há certo esforço dos agentes de adoção no sentido de que os irmãos cresçam juntos. Difícil tarefa: 82,5% dos adotantes querem apenas um filho.
Ou seja, a impressão que se tem é a de que nem todos os casais que se candidatam à adoção estão preocupados com as necessidades das crianças, mas, sim, são movidos por suas próprias necessidades. Crianças não estão como que numa vitrine ou prateleira, disponíveis para contemplação e escolha.
Daí a frase do juiz acerca da pedagoga reverberar tanto: “uma história que deve ser lembrada como um verdadeiro exemplo de adoção incondicional”, fato raríssimo por essas plagas tupiniquins.
Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão e doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires, Argentina. É autora dos livros “Herança: Perguntas e Respostas”, “Família: Perguntas e Respostas” e “Direito LGBTI: Perguntas e Respostas.
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