Por Ivone Zeger
Num dia de mau humor, a parte disponível da herança pode rumar para a África.
Rosália é uma pessoa adorável, uma empresária de sucesso, respeitada no meio em que atua por seu profissionalismo, competência e ética. Tem um círculo de amigos considerável e costuma cultivar as amizades com gosto e dedicação. Mas se nos negócios toma decisões com cautela e de forma coerente, na vida familiar tem verdadeiros ataques de nervos que já se tornaram folclóricos para essa e as próximas gerações da família.
“Uma vez foi a baixela de prata que voou longe, outro dia salvamos o lustre de cristal. Mas dessa vez a coisa piorou”, relatou sua irmã, no meu escritório.
Proprietária de imóveis no interior paulista – Ribeirão Preto, Araçatuba, Presidente Prudente – e em bairros nobres da capital paulista, Rosália ameaçou, numa manhã de fúria, fazer um testamento e legar tudo para uma ONG – Organização Não Governamental – africana. Acostumados a conviver com esses rompantes, os familiares contabilizam os pequenos prejuízos, consequências das ações concretas que Rosália realiza para além das ameaças, mas desta vez “ela está indo longe demais”, acredita a irmã. Em meio às temeridades, meu papel foi o de esclarecer as dúvidas.
Vamos lá!
Rosália é viúva e tem dois filhos que moram na Europa. Única na família a obter bens de considerável valor, sempre trouxe para junto de si os familiares menos abastados. Assim, em sua casa , moram duas irmãs mais novas e seus respectivos cônjuges; quatro sobrinhos, uma ninhada de huskys siberianos e sete empregados. É essa plateia que, vez por outra, vivencia seus nervos à flor da pele e que agora carrega a dúvida: ela pode fazer um testamento deixando todos os seus imóveis para uma ONG africana?
A resposta é não, mas trata-se de uma negativa parcial. Isso porque Rosália poderá, sim, em testamento, deixar bens para causas africanas.
Mas vamos esmiuçar a questão: quando o proprietário de um patrimônio falece, os bens passam a constituir o espólio, nome que se dá ao conjunto de bens deixado pelo falecido, enquanto o processo de sucessão está em curso, e ainda não houve a partilha dos bens. Assim, quando se abre o inventário e o processo de sucessão, pode-se falar em autor da herança e de herança propriamente. Mais especificamente, “herança” significa a totalidade de bens, direitos e obrigações legados pelo falecido e que serão transmitidos aos seus herdeiros. Para as leis de sucessão, obrigatoriamente, essa herança está dividida em duas partes: a legítima e a parte disponível.
A legítima é constituída por metade do espólio e é a parte destinada aos herdeiros necessários, que são os descendentes – filhos, na falta destes, os netos e bisnetos, sucessivamente. Na falta de descendentes, os herdeiros necessários são os ascendentes, ou seja, pais, na falta destes os avós e bisavós, sucessivamente. O cônjuge também é herdeiro necessário.
Focando no caso específico da Rosália, temos que ela é a autora da herança e tem herdeiros necessários: são seus dois filhos. Não há cônjuge, pelo menos por enquanto. Portanto, ao realizar o testamento, querendo ou não, metade dos seus bens, obrigatoriamente, serão destinados aos filhos.
“E a outra metade?”, perguntou a irmã, aflita.
Eis a questão: a outra metade, a chamada parte disponível, como o próprio nome diz, pode ser destinada a quem Rosália quiser. Inclusive, Rosália pode destinar a metade de todos os seus bens para as causas sociais africanas. Para isso, é fundamental que ela elabore um testamento. Inclusive, se não houver testamento, a parte disponível tem o mesmo destino da chamada legítima: vai para os herdeiros necessários.
É verdade que legar em testamento seus bens para causas sociais africanas não parece uma atitude razoável para alguém como Rosália, que por mais de duas décadas vem contribuindo para o bem-estar dos irmãos, mas legalmente nada a impede de num momento de mais nervoso elaborar um testamento nesses moldes e, num segundo momento – também mais exaltado –, assiná-lo. A irmã se lamentou profundamente, disse que não tinha nenhum bem em seu nome e que não achava justo que a irmã pudesse deixar a todos numa situação difícil após seu falecimento.
Nessas situações, eu costumo consolar meus clientes com questões até bastante objetivas. Mencionei que Rosália poderia, por exemplo, doar em vida parte de seu patrimônio às irmãs. Mas ela não me pareceu convicta de que a irmã pudesse fazê-lo. Talvez não em um dia de fúria, mas quando estivesse com a cabeça fresca, ponderei. Mas a moça parecia inconsolável.
Então, contei à irmã de Rosália um caso bem pior. Como eu explicitei anteriormente, a herança é o conjunto de bens, direitos e obrigações deixados pelo falecido. Atentemos para a palavra “obrigações”. Nela incluem-se dívidas contraídas e não pagas, como empréstimos, compras a prazo, financiamentos. Ou seja, existe quem faleça e além de não deixar qualquer bem aos familiares, deixa problemas e dívidas. Isso mesmo: uma herança pode ser constituída de dívidas.
Nesses casos, o Código Civil é esclarecedor. A lei de nº 10.406, de janeiro de 2002, em seu artigo 1.792 explicita que “o herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança; incumbe-lhe, porém, a prova do excesso, salvo se houver inventário que a escuse, demonstrando o valor dos bens herdados”. Assim sendo, embora não seja possível herdar dívidas propriamente, se houver bens, estes devem ser destinados ao pagamento de débitos pendentes. Já pensou a dor de cabeça dos familiares e do inventariante?
Outras vezes, os próprios credores, por ordem judicial, abrem o inventário e nem sempre sobra algo substancial aos herdeiros. E mais: se as dívidas forem trabalhistas, por exemplo, e o autor da herança doou bens com o intuito de driblar a justiça e salvaguardá-los, e falece em seguida, muito provavelmente esses bens deverão voltar ao espólio e pagar as dívidas. Mas ainda pode ser pior se… A essa altura, a irmã de Rosália me interrompeu. Disse que pensaria a respeito de tudo o que foi dito. “Entro em contato em breve”, assegurou. Parecia resignada.
Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão, doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires, Argentina, e membro efetivo da Comissão de Direito de Família da OAB/SP, do Instituto Brasileiro de Direito de Famíia (IBDFAM). É autora dos livros “Herança: Perguntas e Respostas”, “Família: Perguntas e Respostas” e “Direito LGBTI: Perguntas e Respostas.
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