Por Ivone Zeger
Se há uma situação que rende muita polêmica em família e outras tantas horas de conversa – ou discussão acirrada – é aquela em que o assunto são os usos e frutos da casa da mãe, do pai, da avó, da tia, enfim, de um imóvel. Dito assim com todos os “s”, ou simplesmente usufruto, palavra que, tecnicamente, designa um instrumento jurídico muito utilizado. É popularmente conhecido, está na boca do povo, mas sempre que abordo esse tema, por mais informação que seja oferecida, as perguntas pululam.
Dessa vez, escolhi casos relatados por clientes e leitores e suas dúvidas para esclarecer alguns pontos.
O primeiro deles é um caso clássico, digamos assim, de usufruto vitalício, não fosse o acontecimento de um grave infortúnio. Exponho, inicialmente, as intenções de uma avó, que chamaremos de D. Idália. Ela transferiu a propriedade de um imóvel para os dois netos, João e Carlos, e estabeleceu o usufruto para si. Eis algo bastante comum, uma maneira de beneficiar um ou mais parentes, ou os netos, como nesse caso, e ao mesmo tempo, resguardar o direito de usufruir do imóvel.
Assim, D. Idália tornou-se a usufrutuária, e os netos, na linguagem jurídica, tornaram-se os nu-proprietários do imóvel. Isso significa que os netos, portanto, são os proprietários do imóvel, mas é a D. Idália, como usufrutuária, que passa a ter o direito de habitá-lo até o final de sua vida, por isso a denominação usufruto vitalício. E também pode alugá-lo e viver da renda. O usufruto se extinguirá somente quando D. Idália falecer, e a partir daí, os netos poderão tomar posse do imóvel, ou vender, ou alugar, enfim, poderão fazer o que bem entenderem. Essa era a intenção de D. Idália.
Mas veio, então, o infortúnio; a ordem natural da vida se inverte, os meninos falecem. Por isso a pergunta do leitor: e agora, a casa volta a ser de D. Idália?
Vejamos. Os netos eram os proprietários, portanto esse bem terá de ser inventariado e herdado por alguém. Os descendentes são os primeiros na ordem de vocação hereditária, e os dois rapazes não tinham filhos. A próxima classe da ordem de sucessão são os ascendentes – pais, avós ou bisavós. Eles tinham pai vivo, segundo nos conta o leitor. Portanto, é ele quem herdará a casa. Mas D. Idália continua na mesmíssima situação, ou seja, ela continuará como usufrutuária vitalícia desse imóvel, até que ocorra seu falecimento.
Outro leitor traz uma situação também bastante recorrente, mas nem por isso deixa de suscitar dúvidas. Vamos a ela:
“O meu caso é sobre um apartamento em que meu irmão e eu somos proprietários e minha mãe é usufrutuária. O apartamento foi doado a nós pelo meu pai, por ocasião do processo de divórcio. Hoje em dia, nós três concordamos em vender esse apartamento para comprar outro melhor, mas não sabemos se podemos fazê-lo”.
Sim, é possível proceder à venda de um imóvel nessas condições, uma vez que a usufrutuária concorde com a venda. O inciso I do artigo 1.410 do Código Civil, que trata das questões de usufruto já responde essa dúvida. “O usufruto extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de Registro de Imóveis: I – pela renúncia ou morte do usufrutuário”. Ou seja, sua mãe pode renunciar ao usufruto, liberando o imóvel para que os proprietários – você e seu irmão – o vendam.
Caso mais complicadinho envolve união estável e filhos. Vejamos:
“Estou em união estável há oito anos e, antes disso, ainda solteiro, ganhei uma casa do meu pai. Entretanto, há sete meses, transferi por doação esse imóvel para o meu filho, com usufruto só para mim, ou seja, quando eu morrer, a casa será dele. Eu e minha companheira estamos nos separando. Ela tem algum direito a casa?”
Quem vive em união estável pode determinar o regime de bens que deve vigorar, seja por meio de escritura pública ou contrato entre as partes. O regime de bens da união estável, quando não há outro acordo, é equiparado ao regime da comunhão parcial de bens. Nele, ao realizar-se a partilha de bens em virtude da dissolução da união, os companheiros dividem meio a meio os bens comprados na constância da união. Ou seja, os companheiros deverão partilhar apenas o que foi adquirido onerosamente ao longo dos oito anos de relação. Portanto, a casa, recebida por meio de doação do pai, não entra na partilha. Se a companheira tivesse sido apontada como usufrutuária, aí sim, a situação poderia se complicar. Ela não teria direito à propriedade do imóvel, mas teria, sim, o direito de morar, alugar, enfim, usufruir do imóvel.
O fato é: “de boa intenção o inferno está cheio”. Quando se utiliza de instrumentos legais sem discernimento exato, por mais que as intenções sejam boas, a chance de resultar em problema bate, literalmente, à porta.
Uma cliente chegou a meu escritório e relatou seu problema: estava em uma união estável em que, por meio de acordo entre as partes, decidiu-se por organizar os bens através do regime da separação total de bens. Quando ainda estava com o companheiro, adquiriu um imóvel. Portanto, o imóvel é dela. Mas essa cliente preocupou-se com o companheiro, imaginando que na velhice talvez ela pudesse faltar e ele estaria em desamparo. E dispôs uma cláusula de usufruto vitalício em nome do companheiro. Este encontrou outro amor e sobreveio a separação. Onde vocês imaginam que ele está morando com a nova companheira? Isso mesmo! No imóvel que minha cliente comprou. E ela? Procurando outro imóvel para alugar. Não é um absurdo?
Para não cair em ciladas como essa, pode-se lançar mão de outras modalidades de usufruto, como o temporário, que será tema do próximo artigo. Aliás, há uma dezena de modalidades de usufruto das quais as pessoas podem se utilizar: beneficiário, convencional, impróprio, voluntário, simultâneo, sucessivo, remuneratório e outros. Querem saber mais? Aguardem!
Ivone Zeger é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão e doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires, Argentina. É autora dos livros “Herança: Perguntas e Respostas”, “Família: Perguntas e Respostas” e “Direito LGBTI: Perguntas e Respostas.
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