Por David Roberto R. Soares da Silva
Há exatos cinco anos começava no Brasil o primeiro programa de regularização de ativos no exterior da História nacional. Denominado Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), ficou conhecido como ‘repatriação’ ou ‘anistia’.
Apesar da precária redação da lei e das ameaças da Receita Federal, o programa foi um sucesso permitindo a arrecadação de quase R$ 170 bilhões em impostos e multas. Em 2017, um segundo RERCT foi editado, mas com resultados mais modestos.
Pois bem, talvez em breve tenhamos um RERCT 3, abrindo nova oportunidade para contribuintes regularizarem ativos no exterior não declarados devidamente às autoridades brasileiras.
Em 9 de março de 2021, o presidente do Senado Federal, senador Rodrigo Pacheco, apresentou àquela casa o Projeto de Lei nº 798/2021 (PL 798), que reabre o RERCT por um período de 120 dias a contar da publicação da lei, se e quando isso ocorrer.
O PL 798 toma como data de corte o dia 31 de dezembro de 2020. Nos termos do art. 4, § 9º da Lei nº 13.254/2015, isso significa dizer que os recursos regularizados serão convertidos pela cotação de venda do dólar de 31 de dezembro de 2020, que foi fixada pelo Banco Central em R$ 5,1967.
Se aprovado, o PL 798 prevê alíquota de IR de 15% e multa de 167% do imposto devido, o que totaliza um custo de regularização de 40% do valor dos ativos declarados. Vale lembrar que o RERCT 1 permitia a regularização a um custo de 30% com um dólar a R$ 2,66, ao passo que no RERCT 2, o custo era de 35,25% com o dólar a R$ 3,21.
Assim, caso aprovado, o RERCT 3 terá um custo de regularização muito pesado, precisamente 160% maior que o RERCT 1 e 83% maior do que o RERCT 2. A título de exemplo, vejamos os custos de se regularizar USD 1 milhão em cada uma das edições dos RERCT e do possível RERCT 3:
RERCT 1: R$ 2,66 milhões x 30% = R$ 798.000,00
RERCT 2: R$ 3,21 milhões x 35,25% = R$ 1.131.525,00
RERCT 3: R$ 5,19 milhões x 40% = R$ 2.076.000,00
O PL 798, no entanto, não se limita a alterar o percentual da multa aplicável. Dentre as inovações trazidas pelo projeto, vale destacar a possibilidade de o contribuinte complementar as declarações do RERCT 1 e 2 com ativos não declarados nesses programas, mediante o pagamento do imposto e da nova multa sobre o valor da diferença.
Dada a insegurança trazida pelo “Perguntas e Respostas” editado pela Receita Federal, o art. 4º do PL 798 é explícito em dizer que o contribuinte não terá obrigatoriedade de comprovar a origem dos bens, bastando a sua declaração de que são provenientes de atividade econômica lícita. Na sua Justificação ao PL 798, o senador Rodrigo Pacheco faz referência expressa à resposta à pergunta nº 40 do “Perguntas e Respostas”, editado em 2018 (mais de dois anos depois do fim do primeiro RERCT), que dizia que “que a desobrigação de comprovar documentalmente a origem lícita dos recursos só se referia ao momento da adesão” e que o contribuinte teria que comprovar a origem se assim indagado pelo fisco.
O § 1º do art. 4º do PL 798 é expresso ao dizer que “é da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), em qualquer tempo, o ônus da prova para demonstrar que é falsa a declaração prestada pelo contribuinte.”
Seu § 2º vai além ao determinar que a Receita Federal “apenas poderá intimar o optante do RERCT a apresentar documentação se houver a demonstração da presença de indícios ou outros elementos suficientes à abertura de expediente investigatório ou procedimento criminal diversos da declaração prestada pelo contribuinte”. Mas não é só isso. O § 3º do art. 4º chega a exigir que cabe à Receita Federal demonstrar a presença desses indícios antes de expedir a intimação ao contribuinte sob pena de nulidade.
Não obstante as tentativas válidas de esclarecer certos pontos polêmicos da lei original do RERCT, o projeto perdeu a oportunidade de sanar a maior dúvida de todas: se o montante a regularizar deve ser feito pela ‘foto’ ou pelo ‘filme’, ou seja, se deve ou não incluir os valores gastos em anos anteriores à regularização.
A Receita Federal sempre entendeu que a regularização plena somente ocorreria se o contribuinte incluísse os valores consumidos (gastos) nos anos anteriores à data de corte. Embora tenhamos convicção de que a lei era clara o suficiente sobre a regularização apenas do saldo (foto) e não dos valores consumidos (filme), o PL 798 poderia aproveitar e esclarecer o assunto de forma definitiva. É até interessante notar que a Justificação do PL menciona a controvérsia “foto x filme”, mas fica por isso mesmo, sem tratar do tema.
Alguns podem se perguntar se um novo RERCT teria o mesmo impacto das edições anteriores, dado que hoje a troca automática de informações entre mais de 100 países deixaria pouco espaço no mundo para que valores continuassem não declarados.
Na verdade, ainda há muito dinheiro no mundo não devidamente declarado. Na época do RERCT, o mundo caminhava para a troca automática de informações, mas deixando um grande player fora desta equação: os Estados Unidos. Embora a América tenha adotado o FATCA com dezenas de países para troca automática de informações, o sistema FATCA é assimétrico e desfavorável aos países em relação aos EUA.
Explico: enquanto o FATCA exige dos países – Brasil incluído – informações detalhadas sobre contas detidas direta ou indiretamente por americanos, os EUA fornecem informações apenas sobre os titulares diretos das contas americanas. Assim, um brasileiro que mantenha uma conta bancária não declarada nos EUA em nome de uma empresa offshore não é reportado ao Brasil, dado que o titular é uma offshore e não a pessoa física. E foi por causa disso que muitos brasileiros tiraram dinheiro não declarado de outros países (ex., Suíça) e enviaram para contas americanas, cujos titulares eram empresas.
Mas o destino dos recursos não declarados não foi apenas os EUA. Investimentos em imóveis e apólices de seguros também foram destinos de recursos não declarados nas primeiras edições do RERCT, sem contar a aquisição de joias, pedras preciosas e barras de ouro e outros metais. É certo que o mundo ficou menor e mais complexo para quem não declara seus recursos no exterior de maneira adequada, mas estamos longe da regularização plena.
Em 31 de março de 2021, o senador Renan Calheiros foi designado relator do PL 798, mas o projeto ainda não evoluiu além disso. Uma das reclamações das edições anteriores foi a proibição de que políticos ou seus parentes pudessem aderir ao programa. Não seria surpresa que, durante a tramitação, alguma modificação ou emenda fosse aceita para incluir a classe política e/ou seus parentes. Em realidade, seria uma medida de justiça, dado que as leis anteriores presumiram que todo valor no exterior de políticos era de origem ilícita sem permitir que se provasse o contrário. Ao condicionar a participação no RERCT aos recursos de origem lícita, não haveria razão para se proibir políticos e seus parentes de aderirem ao programa. Uma declaração falsa sobre a origem dos recursos já seria suficiente para a exclusão do programa, não havendo razão para a proibição pura e simples desse grupo de pessoas.
É certo que o Governo precisa de recursos e um novo RERCT poderia trazer certo alento aos cofres públicos neste momento de pandemia. Aguardaremos cenas dos próximos capítulos.
David Roberto R. Soares da Silva é advogado tributarista, também especializado em planejamento patrimonial e sucessório. É sócio do Battella, Lasmar & Silva Advogados, autor do Brazil Tax Guide for Foreigners, e coautor do Planejamento Patrimonial: Família, Sucessão e Impostos, Tributação da Economia Digital no Brasil, e do e-book Regimes de Bens e seus Efeitos na Sucessão, todos publicados pela Editora B18.